A triste sina do vestido preto com rosas brancas
O vestido.
Mais um.
Este vestido foi comprado num sábado de penitência judicial (o tempo sara tudo, já não chamo mulher da vida à senhora).
Num sábado em que o cartão multibanco não teve descanso, lá para os lados do Chiado, e a pobrezinha da Astride, sempre fiel, sempre ao meu lado, a acompanhar-me de aparelho de titânio cravado nos dentes, numa dor branca, que não mata mas mói.
No Sábado em que encontrei o Zé Ralha na Praça da Figueira envergando um molho de papiros gigantes (algures semeado neste quintal, para aí em Março, às portas da Primavera: está tudo na minha cabeça, mas eu nunca fui boa nem para datas, nem para nomes).
No Sábado em que pus os pés pela primeira vez na Confeitaria Nacional e ontem, apenas para que fique em acta, saboreei o primeiro mil folhas dos 27 anos que carrego em cada perna, em cada ruga, em cada cabelo branco – nós, os conservadores, somos atreitos à mudança, eu gosto de palmiers simples e cobertos, e quando a Pastelaria São João, na Avenida de Paris, tinha pintado, no estuque das paredes, uma réplica naïf do quadro São João, do pintor espanhol Murillo, (deixa ir ao Google procurar o quadro), com uma placa a informar que dizia: “São João Baptista, de Murillo – Réplica, não fosse a velhota mais incauta pensar, a meio do seu chá e da sua torrada, que aquele era o verdadeiro e que o que está no Prado é que é réplica, e quando eu me sentava com a avó Zá (primeiro íamos à leitaria da UCAL), numa mesa junto à janela, sentavamo-nos sempre ali, quando o São João não era um café com as paredes forradas a azulejos brancos, indiferenciados, e havia para além do São João Baptista outro “fresco” com uma perspectiva impossível da Igreja da Praça de Londres, eu também gostava de palmiers recheados, com um creme branco, tipo chantilly, eu sonho com esses palmiers, mas nunca mais os vi, só há nas pastelarias uns exemplares recheados com creme amarelo de ovos, e eu não gosto de doces com ovos, pudins, iguarias da região de Aveiro, relíquias conventuais não me excitam e as ancas agradecem, ai se agradecem, e eu como sempre bolos de arroz, dos verdadeiros, dos feitos com farinha de arroz e não as falsificações, gordurosas como queques que se vêem por aí, os que têm papel na base, é o meu bolo favorito, depois vem o xadrês, depois, talvez, o vává, e agora mais recordações de verões passados, na pastelaria Doce Beira, a dois passos da nossa casa de Viseu, vávás – não como vavás há tantos anos – devorados em banquinhos volantes ao balcão, mas eu nunca tinha comido um mil folhas e nem é mau de todo (o mesmo se aplica ao presunto e à sapateira recheada, mas continuo a ter as minhas reservas ao salmão fumado, ao caviar, aos camarões e percebes, que teimei durante anos odiar sem nunca ter provado).
O vestido não merecia. É um bom vestido. Lindo. Que me favorece. Devia ficar como o vestido com o qual aterrei nos Emirados Árabes Unidos, depois de uma viagem de avião de oito horas. Ou de um jantar em que a Qui Qui confundiu erva com coentros (foi estreado nesse jantar, nesse jantar memorável, que estreou os posts fotográficos deste blogue). Mas não. É o vestido da pior sessão de intimidade da minha vida. Recordação feliz, porém, sentada num sofá, vestido já no corpo, descalça, soutien abandonado algures no chão (e por lá ficou algum tempo – eu não posso ser amante, deixo sempre provas, uns brincos, um anel, cabelos, até soutiens), cigarro na boca, estás perfeita, posso tirar-te uma fotografia?
Não tirou, não deixei. Parece-me que este tem registos, como no fabuloso post do Francisco que eu não posso linkar – coisas da vida, quem o manda ter um blogue famoso. E a seguir ao meu nome, e à minha foto, perfeita, com o vestido preto com rosas brancas, viria: “a que ressuscita os mortos”.
5 comentários:
Mais uma vez a salvar-te. Esses palmiers que falas com creme branco há à venda bem perto de nós... Na João XXI, na pastelaria do lado esquerdo, de quem vai da Av. Roma para o Campo Pequeno. Procura que os encontras a qualquer hora do dia, quer-se dizer, de madrugada de certeza hihihihihi... :)
Ai mulher que me dá uma coisinha boa... Tu sabe-me o nome dessa pastelaria, por favor!
Oi... ta giro o blog!
Com tanta doçaria boa até já estou com vontade de comer alguns.. Ai que inferno, não se poder comer à vontade.Sim é a crucificação da mulher, estar proibida destes pequenos prazeres. Porque os outros há que lambuzar enquanto se pode...
Anabela do Castelo
Não é pastelaria, sorry... É uma padaria. Sobes a João XXI do lado da Culturgest em direcção ao Campo Pequenoa. E vês uma padaria pequenina. É lá que têm...
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