Viola Tricolor
Enquanto o meu candidato presidencial não sai de uma diligência (estará a defender um miserável operário despedido ilicitamente por um vil patrão?), enquanto não entra no seu BMW topo de gama, enquanto não dá um saltinho pela doca para olhar para o Tejo mal-cheiroso e para o seu iatezinho modesto, enquanto a secretária Francisca não lhe transmite o meu recado, enquanto tem o telemóvel desligado e eu não gosto de falar para gravadores, irrita-me a minha voz, os meus ésses muito sibilantes a lembrar cascavéis, e dêem-me tudo para fazer, venham os buracos nas estradas, os acidentes de viação e de trabalho, venham as cheias e os novos lisboetas de Domingo, não me ponham é a desgravar entrevistas, mas enquanto o candidato não está disponível, vamos a isto, a mais uma lição de botânica, com desvios para caminhos de cabras a cada três linhas.
Já vos contei. Guardo mágoas desta vida. Guardo-as numa caixa de madeira, fechada a sete chaves e três aloquetes, mas elas às vezes escapam, são arraçadas de Houdini. Não se deve guardar mágoas. Em que caixa-forte for. Com porta blindada, ou com fechadura das Chaves do Arreeiro. Não se deve. Debaixo do colchão ou emapredado na cave. Não se pode. Consomem, remoem nas entranhas, vincam-se na cara, mas eu não sou perfeita, levo muitas chapadas e depois esqueço-me, dou a outra face como o outro senhor das sandálias de couro que foi parar à cruz, tento dar a outra face, não gosto de odiar ninguém, estou cada vez mais banana, cada vez menos Ralha, mas isso até nem é mau de todo, eu rezo, eu voltei a rezar e rezo muitas vezes para não ser igual ao meu pai, que usa, suga e deita fora olhando apenas para o seu umbigo, eu sou boazinha, eu reciclo as minhas dores, transformo-as em textos, porque eu não sei escrever música, mas eu oiço música na minha cabeça a toda a hora, eu tenho tudo cá dentro, eu invento todos os dias uma melodia nova para a minha filha, mas depois esqueço-me, porque eu não sei escrever essa essa linguagem e a minha memória não é como a do meu avô Ralha, que declama os Lusíadas e a Eneida e a Odisseia que aprendeu há 70 anos atrás, eu nunca fui assim, de empinar, já não me lembro sequer da primeira declinação de Latim, mas tento exercitar a minha memória, tenho medo de acabar com uma doença neurológica degenerativa como a minha tia Lena ou a minha Tia avó Atilde, às vezes repito a melodia 300 vezes, vou no Idea, de manhã, levar a Carolina à Magui à Estados Unidos e desligo o auto-rádio para empinar a música do dia, inventada de manhã enquanto limpo um rabo, preparo um biberon, mas, invariavelmente, no final de mais um dia de trabalho, de orelha encarnada de estar colada a um telefone, de dedos cansados de tanto escrevinhar, depois disso, eu já me esqueci, porque não a escrevi, eu não sei essa língua, nunca ninguém ma ensinou eu só a entendo, mas se eu soubesse, as minhas mágoas eram canções, modinhas, fadunchos, mas tenho as minhas mágoas, as que não consigo digerir, as que não cicatrizam por dentro, apenas por fora, e que depois doem quando o tempo está a mudar como os meus joelhos, como, mais recentemente, a minha mão direita.
O senhor que mais mágoas tatuou no corpo (tatuagens definitivas, não são daquelas que saem em três anos e a Magui continua a achar que a que está desenhada nas minhas costas vai desaparecer, ou se calhar não, ela já não fala disso, conformou-se, como os pais que têm filhos gays, ignoram, não citam a orientação sexual da sua descendência na esperança de se não se fala não existe, mas não é assim, eu passo grande parte do meu dia - das minhas noites, sobretudo - calada e existo, continuo cá, às vezes olho de soslaio para ver se estou toda ou se já desapareceu qualquer coisinha, mas, no caso da tatuagem, para não ser deserdada, tive que garantir à minha mãe, que a libelinha arte nova que está gravada a preto no final das minhas costas é das que saem com o passar dos anos e já lá vão três e qualquer coisa, fui almoçar ao Independente e depois decidi fazer uma tatuagem), que me marcou com ferros em brasa, quer eu queira, quer não, para o resto dos dias, e fê-lo num curtíssimo espaço de tempo, ele tinha lençóis de flanela com amores-perfeitos roxos estampados, tinha amores-perfeitos numa cama de solteiro de contraplacado, que rangia sem ninguém lhe tocar.
Eu estava muito drogada, substâncias legais, prescritas pelo médico, aviadas na farmácia. Mas lembro-me dos amores-perfeitos no quarto poeirento que me fazia alergia. É a melhor recordação que guardo dele, numa caixinha pequenina de veludo azul escuro. Essa, e descer a correr, de braços dados, de saltos altos, muito altos, muito finos, uma ruazinha a pique ao pé do Largo do Caldas.
Viola Tricolor. Herbácea da família das violáceas. Conhecida vulgarmente, em Portugal, como amor-perfeito. Tem outro nome de baptismo, que poucos conhecem: "erva-da-trindade", denominação meia beata, porque as as suas flores podem ser de três cores, como as entidades da Santíssima Trindade.
Em França, é flor amada há séculos e séculos e chamam-lhe "pensée" (pensamento) - quando o que importava era a intenção, as pessoas ofereciam flores e não Playstations ou Ipod's (as flores parece que agora estão confinadas ao piroso dia dos namorados e aos funerais, a mim, não se atrevam a comprar-me coroas de flores quando eu morrer; dêem-mas em vida, camandro!). Se a intenção era o desejo de ser lembrado por alguém, enviavam-se ramalhetes de amores-perfeitos. Reza a lenda que, as mulheres dos marinheiros, da Bretanha, davam um pouco de terra dos amores-perfeitos dos seus canteiros ao maridos, para que não se esquecessem delas e da família durante as longas viagens. É símbolo da meditação, de recordações e reflexão.
É impossível não se associar esta singela flor, utilizada amiúde para as bordaduras de canteiros de jardins coloridos, com o amor. Tal como ele, é muito frágil e delicada, tal como ele, tem uma curta duração (que seja eterno enquanto dure).
Na Idade Média, os feiticeiros acreditavam que ela afastava todo o tipos de mal. Poucas pessoas o saberão - eu sei porque sou um reservatório de conhecimentos inúteis -, mas o amor-perfeito é uma flor comestível (saberá esta, a senhora Lucena?)
Por isto, por muito mais, porque desejo amores-perfeitos para todos os dias de 2006 (amores-perfeitos podem não ser esses que vocês estão a pensar, eu não estou desesperada, não ando à caça, apesar de ter nome de divindade associada a essa actividade, falo de amores-perfeitos associados a amores incondicionais, falo de amores perfeitos do tipo: "Dia, vai tirar as pilhas do vibrador e põe no porquinho da tua filha, para ele cantar e dançar", falo de amores-perfeitos que me ensinam palavras japonesas e bailados de karaté, falo de inconfidências trocadas no primeiro blind date, falo disso, não falo de quecas, não falo de instant pleasure, como na canção do Rufus que toca neste preciso momento), bebi a primeira bica do ano na Suprema, atravessei a rua para o outro lado, entrei na Romeira com a Magui, há 20 anos atrás, a Magui entrou na Romeira para comprar coroas de flores para o funeral da minha avó Tóia, e elas estavam a fazer coroas funerárias com rosas, orquídeas, coroas imperiais, com fitas de cetim roxas, com cruzes douradas, a chefe gritava ao telefone, "Onde está o carro funerário? Já devia estar cá a levantar a encomenda!", eu senti-me num episódio do Sete Palmos de Terra, mas comprei dois amores perfeitos, um euro cada, um para mim, um para a Thê e devia ter comprado mais dois: um para o Ganilho, outro para a Carrie. Eu sempre gostei de metáforas, eu sempre gostei de amores-perfeitos.
[isto é o que dá a quem está demasiado atento à realidade, a quem é fixado nela, como diria o inominável, um dia, no fumódromo do primeiro piso de uma fachada verde da Rua Viriato]
9 comentários:
Valeu a espera... Até amanhã...
Obrigada pela paciência. Obrigada pela atenção.
E temos um novo recorde neste quintal: 512 pageloads para 142 visitantes únicos. Não tarda nada estou à frente do Gloria Fácil. ehehehehehehehe
As minhas primeiras flores do ano, enquanto espero que a minha orquídea, a única flor que sobrevive à minha falta de atenção, ter um gato é mais fácil, não morre de fome como as plantas morrem de sede, o Esparguete miava e dava-me marradinhas nas pernas e na cabeça para me lembrar que eram horas de acordar, que eram horas de comer, dizia eu, enquanto espero que a orquídea floresça, e já não deve faltar muito. A orquídea não mia, nem me pede atenção, mas todos os anos por esta altura retribui o meu desdém com dois cachos, não se chamam assim, mas também não são apenas duas flores, são várias por dois ramos acima, de um rosa velho. E lá estou eu a escrever lençóis na tua caixa de comments quando nem um post com duas linhas me sai dos dedos, nestes dias de alma vazia… Ah! Tudo isto para dizer Obrigada :)
Meu amor,
Estás a apanhar o vício das vírgulas em vez dos pontos finais.
Fica sabendo, querida, que as orquídeas são das flores mais difíceis de fazer florir. É preciso ter dom. Dão mais trabalho que os gatos. E se a tua gosta de desprezo, se decide florir sem cuidados de maior, é porque, de facto, és uma pessoa do camandro. Porque as orquídeas não lançam flor para pessoas más, limitam-se a dar folhas.
A minha verde já está com um cacho. A rosa prepara-se para abrir muito em breve. Os antúrios também já estão cá fora e a tangerineira anã da casa-de-banho já tem uma bolinha laranja nos seus galhos.
Escreve os lençóis que quiseres.
Eu hoje tenho Garcia Pereira em Setúbal, mas logo que tiver um bocadinho, venho aqui aliviar o cérebro com uma posta sobre casas e anúncios classificados.
são esses que esperamos. esses amores. eu adorei o meu. apaixonei-me por elas há muitos anos em coimbra. quando a minha segunda mãe (que já foi ter com o seu criador) me chamou à atenção para eles. e nos meus anos me ofereceu os meus primeiros amores perfeitos. foram eles que me acompanharam no dia em que despedi dela. também ela foi para mim um amor perfeito. um beijo minha querida
thê
eu sei que sou chato, mas para quando o livro?
com tantos leitores... já sabes "Uma página por Dia"
Tardou mas veio... Como sempre muito bom... :)
é lindo! uma página por Dia. (esta até merece maiúsculas!)
A minha querida Carrie, que, até ontem era apenas um IP, deu-me uma coisa muito bonita, no seu fantástico blogue: uma árvore por Dia, escreveu ela e postou uma foto de uma árvore que só lhe traz boas recordações. Isto foi quando eu andava triste por causa dos chopos, eu não esqueço, e eu sempre dependi mesmo da bondade dos estranhos, que ao que parece não são assim tão estranhos, mas isso é para outra posta, que, seguramente, sairá surreal.
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