quarta-feira, novembro 16, 2005

Almoço económico

Dois minutos para a meia-noite. Gosto de tradições.

O João tem um buraco no coração. A Clara uma borbulha no queixo. A Cristina tem 38 anos há pelo menos cinco e o Nicolau um papillon azul com bolinhas brancas que, se calhar, comprou numa loja ao pé do liceu.
O Pedro parece o Richard Gere em versão liliputiana (o poder assenta-lhe que nem uma luva de pelica, como ao Nicolau) e a Isabel anuncia que quer ser uma velha gaiteira. Cravo cigarros à futura tocadora de gaitas sénior e tenho vontade de dizer ao Nicolau que me lembro dele muito bem, não de papillon, não num canal da Tv Cabo à sexta-feira à noite, mas sim, de fato de treino, na Quinta do Lambert, na primeira redacção bafienta do pasquim, fato de treino como aqueles que encontramos às centenas em qualquer hipermercado do meu patrão, num sábado de manhã. Não digo, mas portei-me mal ainda assim - disse muita merda e é um facto que não mando nenhum director para um sítio chato que eu cá sei há muito tempo.
Garanto à Clara que estou bem - escreves tão bem, mas é tão triste, fiquei com o coração apertadinho, diz ela baixinho, usando mais uns adjectivos sempre acompanhados pelo sufixo "inho", vício danado da portugalidade (o meu favorito é o "obrigadinho").
Delicio-me com a imagem de uma médica aqui da minha rua ir arranjar o coração do João (também quero que a vizinha do Hospital da padroeira das donas de casa dê uma olhadela no meu) e garanto à Cristina que nunca dormi com ninguém da secção.
Trato o Pedro por tu, quando nunca o consegui fazer quando ele me ensinou a fazer notícias (a primeira que fiz, no computador do Paulo, ao seu lado direito, foi sobre o preço do Brent do mar do Norte. O barril estava a 22 dólares e a OPEP ponderava aumentar a produção em 500 mil barris/dia para impedir a escalada dos preços - onde é que os 22 dólares já vão...).
O Pedro foi o meu primeiro e mais amado chefe, lembro-me de chorar com soluços quando ele se foi embora do Lambert do tecto radioactivo. O João ensinou-me a refilar e revelou em mim uma veia sindicalista perigosa e perturbadora para quem vem de uma família de reaccionários. A Cristina deu-me um conselho para a vida, antes de eu chegar aos vinte - nunca te mudes para casa dos gajos; eles é que se mudam para a tua (não lhe dei ouvidos na primeira, mas há quatro anos que fiz do seu conselho um mandamento para toda a minha vida). A Clara foi emprateleirada comigo ao mesmo tempo e foi a única a telefonar-me quando eu estive quase louca, umas semanas antes de engravidar.
Não faço parte da pandilha de jornalistas de Economia há quase dois anos. Por mais que nos ponham a escrever sobre as coisas mais impensáveis, enterrados na cauda de uma secção que tem horários ainda mais reduzidos que os da função pública, quem entra nunca mais sai. Pertenço, até à morte, a esta sociedade secreta.
E estava cheia de saudades.

1 comentário:

Anónimo disse...

O Pedro-Richard-Gere em ponto pequeno ficou todo babado. Eu também, ò blogueira da sociedade secreta

beijos (inhos)

C.