segunda-feira, novembro 14, 2005

Manhosococus e outras reencarnações

[Post escrito com três dedos da mão esquerda: vai sair devagarinho, a conta-gotas, provavelmente com algumas gralhas e um pouco manco, porque não escrevo há muitos dias e dedilhar teclados de computador, ou desenhar letras em folhas de papel, não é fácil ou eterno como aprender a andar de bicicleta -

é uma Ralleigh encarnada, estava no terraço abandonada com uma vista deslumbrante sobre a minha cidade, estava enferrujada, o Zé limpou-lhe o pó dos séculos no jardim de Inverno, a ferrugem dos cromados desapareceu como magia sob o efeito de um spray chamado Bala, o Zé tirou as rodinhas paneleiras, porque ninguém aprende a andar de bicicleta com rodinhas, disse-me ele, e fomos a pé, eu e a Magui, com a Ralleigh quase nova pela mão até a uma oficina nojenta, numa ruazinha feia, cheia de marquises, uma rua perpendicular à avenida do Brasil (e vinte anos depois, foi ali, se calhar, que eu fiz a minha filha, numa casinha feia de porteira, eu quero acreditar que não, que foi, ou na minha casa de bonecas com a altura de um 11º andar, ou em Marvão) e já não sei o que lhe faltava: um pedal, um pneu, a buzina? Não me lembro... Foi numa Ralleigh encarnada, na calçada branca do jardim da Estados Unidos da América, mãos coladas ao guiador, palmas suadas de excitação, muitas gargalhadas embaladas pelo ventinho da velocidade de duas pernas a pedalarem a medo e quando olho para trás, não estava lá o Zé, já estava a andar sozinha, o Zé, o meu tio-pai tinha deixado de me amparar a marcha sem aviso, olho para trás, dou um berro e caio dois segundos depois, esfolando o joelho direito -,

vai demorar: está a ser cozinhado em lume brando porque a botija do gás light está quase no fim (hoje tirei o amaciador do cabelo com água quase gelada), e porque a minha melhor mão, a direita, está roxa, apertada dentro de uma luva elástica com talas que me fazem nódoas negras. Vai sem pressas, estou a aprender a escrever outra vez, na sala cinco da escola primária do Bairro das Estacas]

A Magui chama-lhe o manhosococus. É um vírus oportunista que ataca apenas quando as nossas defesas estão quase esgotadas pelos enxertos de porrada dos dias difíceis. Não tomo Actimel, sabe mal, é escandalosamente caro e não gosto da ideia de dez mil mihões de L Casei Immunitas a invadirem-me o estômago, e o manhosococus destruiu-me o fim-de-semana.
Estava muito vulnerável. Perdi um amor literário, uma história que não era bonita, mas que trazia sorrisos parvos a esta casa, mas adiante, a história, ou a lembrança dela, já só me faz sangrar aos pinguinhos (vi-me obrigada a improvisar um torniquete, já sou naturalmente anémica e estava a ficar branca demais, já nem pareço filha do meu pai, mas sim da minha esquálida mãe, apertei a ferida com um trapo e todos os dias ponho um penso rápido do Pingo Doce do lado esquerdo do peito para assinalar o mapa da dor), solto umas pinguinhas de trinta e três em trinta e três segundos, porque quero que alguém siga o meu rasto, pode ser que alguém me encontre.
Dias difíceis, estes, em que o meu instrumento de trabalho, a minha mão direita, a tradutora da minha consciência, decicidiu reclamar e protestar com uma greve geral pelo direito consagrado na lei de semanas de 40 horas de trabalho (estamos a rever o contrato colectivo de trabalho: eu fiz uma proposta de 75 horas semanais, aguardo contra-proposta munida de anti-inflamatórios e analgésicos).
O manhosococus recebeu o alerta por sms, estava eu ainda na Cuf das Descobertas, a radiografar a minha mão (quando era pequena tinha medo de raio x, porque se via o esqueleto), foi direitinho ao arquivo buscar a ficha com todos os meus dados bibliográficos e atacou-me no Sábado. Não ofereci resistência e estive de cama, febril, entregue aos cuidados e canjas da senhora minha mãe, que conhece este sacana do manhosococus de gingeira, e sabe que ele não resiste a torradas e chás com mel de uma mãe.
Sonhos terríveis visitaram-me. Num, um monhé (atenção, não é depreciativo: o meu pai é monhé e eu própria se andasse de sári...) tinha um restaurante na Avenida da Igreja, onde às terças-feiras fritava gatos e peixinhos de aquário vivos, em tinas de vidro com óleo borbulhante.
No outro, o vizinho que se mudou para o prédio em ruína do Largo das Palmeiras, o vizinho que eu não conheço, que nunca vi, mas admiro e gostava de conhecer, penso nele todas as noites quando farejo um lugar de estacionamento fora da jurisdição da EMEL, não sei se é homem, mulher, se é novo, velho, barrigudo ou espadaúdo, só sei que o vizinho pintou as seis janelas do primeiro andar daquele prédio agonizante e o prédio agradeceu a carícia, o vizinho sussurrou-me: "Noutra vida, foste uma casa. E foste abandonada como este prédio".
E enquanto me mostrava assoalhadas que nunca mais acabavam, enormes de tectos altos e trabalhados por mestres estucadores, assoalhadas onde nenhuma parede estava em esquadria, chão de tábua corrida, assoalhadas vazias, paredes brancas, algumas tinham rachas e outras manchas de humidade, o vizinho (era um homem de quarenta e picos anos, no meu sonho) sossegou-me: "Vai chegar alguém, vai bater à porta e pedir para pintar as tuas janelas, para tapar as rachas dos terramotos recentes. E as casas fechadas, tristes, doentes, aquelas todas pelas quais passas todos os dias, sem seres como os outros, os que passam sem reparar na sua beleza, estão todas a torcer por ti. Porque tu, na outra vida, foste uma casa como elas".

2 comentários:

Anónimo disse...

Welcome back. Missed you.

Mary Mary disse...

Um post bem ao teu estilo! Espero que estejas melhor do braço e da gripe... Parece que acontece sempre tudo ao mesmo tempo, né? E um dia aparecerá um pintor para pintar as tuas paredes... :)