Ver o Natal e outras histórias atrás de um volante
Sou a primeira Oliveira-Ralha,
(não é finória, Leonardo, esta história do hífen? O meu próximo filho há-de levar hífen e se calhar apóstrofo também e fica d'Oliveira-Ralha, perco mais uns anos de vida nos Tribunais, peço dezenas de pareceres à Comissão para a Igualdade e para os Direitos da Mulher para me deixarem ter os apelidos dos nossos avós em último lugar, ou então vou ao banco de esperma e não tenho chatices ou cabelos brancos para lá dos que são normais para quem está quase com trinta anos - esta é a solução prática da nossa progenitora, que até patrocina a ida a Espanha, não para fazer um aborto - neste blogue ninguém aborta -, mas para fazer um filho)
em mais de meio século, a ter um documento na carteira emitido pela Direcção Geral de Viação (a minha ainda ainda é das cor-de-rosa e tenho o cabelo muito curto, pente três), vulgo carta de condução.
O meu avô Oliveira ter-me-ia comprado o carro dos meus sonhos para celebrar o feito notável de ter quebrado a maldição com distinção (conduzo mesmo muito bem e o meu tio Zé, o que me ofereceu não o meu primeiro carro, mas sim, a primeira Barbie, o que sustenta a ex e a brasileira que nem sequer chegou a ser futura ex, que lhes dá casa, Alfa Romeos, que lhes monta negócios, que vende andares todos os anos para sustentar as putas que nem sequer o fodem como deve de ser, apenas lhe fodem o juízo e o coração - prevejo o pior: serei tão ou mais banana como o meu tio Zé -, um dia, estava eu a fazer marcha atrás que nem uma louca, com o Twingo, que o Idea tem uns sensores idiotas que me estragam o prazer de fazer razias milimétricas aos carros estacionados, não há nada que me dê tanto gozo como uma marcha atrás semi-alucinada, e o Zé disse: "Quem me dera saber fazer marcha-atrás como tu". Foi um dia bom esse, melhor, melhor só quando apanho todos os sinais da Avenida da República verdes, ou quando tenho lugar de estacionamento à porta de casa ou do jornal, pena que o Zé nunca me tenha visto a fazer a curva da saída para Entrecampos do eixo norte sul, a 127 Km's/H, outra vez no Twingo, conta quilómetros digital centrado no tabelier, reduz para quarta, rodas direitas no ar, puta da curva dava-me um gozo danado a ser desbravada quando vinha da faculdade...)
O avô Oliveira dava-me um Mazda MX5, verde-escuro, estofos de cabedal, aposto que sim, ele fazia-me as vontades todas, deixava-me escrever à máquina quando nem sequer imaginava qual era o poder das letras, ficava no escritório horas sem fim, ele ia buscar os cadernos de caligrafia do início do século XX onde aprendeu a desenhar letras, não se conformando apenas a saber escrever, ensinou-me a fazer os D’s e os A’s mais lindos, de vez em quando, já não queria escrever, apetecia-me fazer contas e ele tirava a máquina do armário, tinha uma manivela e papel como as caixas registadoras, e eu brincava aos supermercados, fazendo cálculos absurdos. Nunca fui uma criança irrequieta, como pedaço loiro de mim, queria ser costureira ou cabeleireira, ou embrulhadora de presentes de Natal, gostava de andar de triciclo e de bicicleta, também passava horas a desenhar e o primeiro livro que escrevi "O mundo dos felinos, pela grande arqueóloga Diana Ralha" tem ilustrações de cair para o lado e textos lindos de uma ingenuidade que ainda hoje me comove - isso e um desenho que fiz para os avós Ralha, papel timbrado da secretaria de Estado do Ensino Superior, desenhei o avô com cabelos loiros, chapéu de cozinheiro e um rolo da massa, de mãos dados com uma senhora loira com brincos compridos - era a minha avó Zá, que, na vida real tinha o cabelo curto de cor cinzento-velha e usava sempre uns brincos muito simples, duas pérolas, mas, também, o meu avô também não era loiro, nem nunca o vi a cozinhar. Fiz o desenho para lhes oferecer num aniversário de casamento, lembro-me de a avó Zá estar a tirar um castiçal do aparador da sala, e eu nas pinturas na secretária do avô, solene, compenetrada, inchada porque ela dizia que eu ia ser uma grande pintora, com a caixa de lata dos lápis de cor Caran d'Ache em cima da mesa, sei que lhe pedi um copinho de água porque queria fazer aguarelas, ela trouxe-mo, claro, ela teria amado se eu fosse artista, ter-me-ia apoiado ao contrário de todos os outros que teimaram que eu fosse doutora, trouxe-me também um pincel, eu chafurdei à vontade, o desenho ficou lindo e depois, com uma letra garrafal, muito mal amanhada escrevi: Parabéns, Vóvó e Vovô - tenho lá o "Livro dos felinos" e o desenho dos avós, feitos por uma criança com a idade de um dígito só, guardados numa caixa de recordações.
Marcha atrás na história, meti-me num beco sem saída – muito a propósito esta metáfora, num texto em que se fala de carros.
Uma geração inteira de desencartados e se não tivesse a mania de ser do contra (três anos a estudar latim só para saber uma coisa que o Leonardo não sabe) lá andaria eu de táxi de um lado para o outro - o único transporte público que os Oliveira-Ralha conhecem; a Magui, que é mais dada, durante uns anos – poucos – enfrentou o pesadelo dos autocarros 44 e 50, quando trabalhava na Matinha e não havia as Torres de São Gabriel, ou o bonito guetto dos ricos, mais conhecido por Parque das Nações.
O Zé Ralha não conduz – conta uma história qualquer do padrinho, que atropelou não sei quem, admite que seria um perigo na estrada e a mim isto espanta-me, juro que me deixa de cara à banda, o senhor meu dador de esperma ser tão cauteloso: destruiu várias vidas sem quaisquer contemplações, sem olhar para trás, atropelou muita gente, é de louvar que tenha a consciência (eu deitava as mãos ao céu se ele tivesse consciência) de que ainda mataria alguém se algum dia se sentasse à frente de um volante.
A Magui diz que tem sindroma de Manier, não faço ideia o que seja, mas é a sua justificação para ser sócia fundadora do movimento dos sem carta.
O avô Ralha ofereceu ao Leonardo a carta de condução quando ele fez 18 (a mim não me ofereceu a ponta de um corno, pagou-me a bateria do Twingo, que pifou da última vez que eu estive de férias no Robalo, já estava de baixa, grávida de quatro ou cinco meses, pagou-me a bateria e a amolgadela que lhe fiz no porta-bagagens quando mandei uma banca de peixe abaixo - ainda assim, friso: conduzo muito bem-, e já fui com muita sorte, o Zé Ralha tratou-me a pão de ló nessa semana, eu li o “Life of Pi” ao pé do laguinho, o avô Ralha ligou a cascata, tomei muitos banhos de sol e de piscina, e uma noite o meu progenitor fez o teste da agulha na minha barriga com o seu melhor ar de bruxo e deu-me a certeza que ia ter um rapaz – e eu nessa altura, já sabia que não era um Lourenço que tinha na barriga, era uma Carolina, mas não quis discutir, gosto de pensar que a agulha dizia que era um rapaz porque a Carolina sai à mãe, tem mais tomates que muito gajo que anda por aí a dar más quecas) e não faço ideia porque é que o meu big brother não tem a carta. Suponho que seja bastante confortável ter chauffer particular.
Eu sempre gostei de carros.
O meu tio Zé ia-me buscar à escola primária, ele almoçava (eu não, pus na cabeça que a empregada me queria envenenar) e depois marchávamos rumo aos Olivais, entrávamos nos sítios mais sinistros à procura de um VW Carmen Guia em estado e preço razoáveis
Era a única rapariga da rua. Brincava com Barbies mas, também, com carrinhos. Tinha o Porsche 911 mal-cheiroso (caiu à sanita e ficou com esse nome), um Lamborghini Contact e um Pontiac Firebird da Matchbox (todos comprados pelo tio Zé).
Quando a avó Zá morreu nunca mais fomos ver as luzes de Natal.
Enfiávamo-nos todos no Ford Cortina do avô Ralha (tenho algumas recordações ténues de um VW Brasília também, parecem um sonho de que não me lembro bem) e íamos ver o Natal, avenida da Liberdade abaixo, até à Baixa. E a minha cara de boneca colada ao vidro, os olhos arregalados, “vovó: como é que a lua se aguenta lá em cima? Está presa com fios?
Mas quando a avó Zá morreu, nunca mais fomos ver o Natal, nunca mais fiz desenhos na secretária do avô Ralha, nunca mais me “princesei” com os pixisbéques dela, guardados numa caixa de plástico castanho chocolate na última porta do roupeiro, nunca mais fomos buscar leite à UCAL, ou beber chazinhos e torradas à pastelaria São João.
Sou encartada há oito anos. Vou todos os anos ver as luzes de Natal sozinha, avenida da Liberdade abaixo, até ao Rossio. Este ano, soube melhor, não foi só uma orgia de luz, cujo único propósito é manter viva a minha avó Zá.
A Carolina lá atrás na cadeirinha de marca alemã aos guichinhos histéricos, aos pontapés no meu banco de tanta excitação, a dizer sem parar: Tchau Tchau, linhas (tradução: estrelinhas). E eu a olhar pelo retrovisor, não vi a Carolina, vi-me a mim própria num Ford Cortina branco, nariz colado ao vidro, boca aberta, olhos esbugalhados. Olhei para a direita, para o banco do pendura, não vi ninguém, mas eu sei que a minha avó Zá estava lá.
(8.800 caracteres; JESUS!!! Como é que eu não hei-de ter uma tendinite???)
[Fotos: Diana Quintela]
8 comentários:
Quero agarrar-lhe as bochechas, dar-lhe miminhos e que não se assuste, que este espírito axcaba por passar, e tudo volta ao normal, até ao próximo ano...
Não aguento... QUE COISA TÃO QUERIDA!!!!
As bochecas são gigantescas, só apetece mesmo apertar...
A pessoa olha para essa carinha e sente paz. E temos vontade de tornar este mundo melhor por carinhas como essa... Seja uma pequena Ralha, sejam os meus irmãos... Ficou lindissima a foto!
Lindo post. Só.
De facto anda por este blogue muito do tal fulgor literário de que falava ontem, "sis". E é algo assaz mais compensador do que a alegria de uma página entregue ou a loucura de caçar as acéfalas gralhas e literais burrices de certos e determinados juntadores de caracteres que conheces demasiado bem.
Parabéns.
Pois...
Infelizmente, não há notícias, o JPH foi brincar aos jornalistas de política para a Assembleia Municipal, já ouvi toda a discografia do Yann Tiersen, passo o dia todo nisto, a escrever, em silêncio, auscultadores nos ouvidos, mas, de facto, é bem melhor do que apanhar um ignorante que escreve Tsum Tsum...
FTA, se isto continua assim (batimento de couro literário recíproco) não sei onde vai parar. :-)
Desculpa dizer isto... Mas o post tá muito bom como sempre...
Agora os 8.800 caracteres não chegam aos calcanhares da cara da Carolina... :P
E entao como que por magia literaria, e esse espirito natalicio que em palavras tuas representa outra vez memorias que nunca terei, mas que de qualquer maneira guardo junto ao coracao (por motivos, espero e acredito que sejam, nobres e para entreter a razao) daz me luz. Obrigado
(tu podes me chamar paulinho qd quiseres. nem eu esperava outr coisa. um grande beijo para voces as duas. Ja comecei com ideias para um prezzie para a Carolina. hehe
Não me canso de ver esta menina linda!
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