Tchau, tchau, flores
Começa pelo meio, passa pelo fim e acaba no princípio... faz tudo sentido fora do sentido.. e para que precisamos nós do sentido quando tudo isto é sentido?
A Magui fritou carapaus, joaquinzinhos, pedofilia gastronómica, aposto que fez arroz de tomate, mas não ponho a mão direita que há bocadinho apanhou um esticão da electricidade ilegal e roubada discaradamente há EDP há quatro meses. Não ponho a mãozita que está menos afectada pelas artroses no fogo, mas joaquinzinhos vão bem com um arroz de tomate, e a Magui fritou-os em pouco óleo, vai comê-los com cabeça e tudo. Sabe bem que eu não como animais bébés e, por isso, fez-me um bife panado e a acompanhar fuzilis tricolor salteados com azeite e alho. A Magui fritou os bichos com a ajuda de uma lupa e não ligou o exaustor, para quê, é tão bonito o electrodoméstico, fica ali tão bem entre o MDF das portas da cozinha, é de inox e potentíssimo, fritou-os e não abriu as janelas, o pior foi mesmo quando fez o molho de escabeche que me revolta os cinco sentidos ao mesmo tempo, fritou-os e os 64,3 centímetros que medem os fios do meu cabelo cheiram a joaquinzinhos fritos com molho de escabeche até amanhã.
A minha filha faz hoje 23 meses. Não fala quase, diz mamã, diz papá, muito recentemente diz vó, diz caco (gato), ão ão, piu piu, peixinho, flor, qui qui (privilégios da minha mana homónima pequenina, fotógrafa oficial da família Oliveira-Ralha), diz mais: chão (que é uma palavra dúbia, tanto quer dizer chão, como colo), diz insistentemente não, às vezes, muito raramente, porque tem um feitiozinho de merda como o da mãe, diz sim. É bem educadinha, apesar das caralhadas que a mãe continua a dizer, e diz olá, adeus, tchau tchau e penso que esgotei o vocabulário do diabrete loiro.
A sorte protege os audazes.
Passamos pelo Largo das Palmeiras, no Idea quentinho pelo ar que não cumpre a sua missão (quer subsídio de Natal, já lhe disse que não há dinheiro nem para mandar declamar poemas ao louco da rua Viriato). O ar quente não desembacia os vidros, pé no travão, há mais de dois meses que tenho o stop direito fundido e sempre que ponho a chave na ignição, o Idea avisa-me do facto com um bip bip acompanhado de "avaria stop e setinha para o lado direito", está assim há mais de dois meses, porque eu só tenho duas garagens automóvel a menos de dez metros da Martinha. Vou ter mesmo que ir à garagem, aquela onde eu pus a primeira gasolina do Twingo - nem sonhava sequer viver vinte e sete passos abaixo -, porque O Idea é manhoso, está sentido com o meu desleixo, e não me deixa acertar as horas até subsituir o raio da lâmpada.
Pé na embraiagem, ponto morto, pé no travão, que não dá sinal a quem vai atrás de mim, porque a garagem é a dez metros de minha casa e é fácil demais, e conto uma duas três palmeiras, faz sentido o nome do largo, sim senhora, estou nisto até que um carro me faz sinais de luz porque parei nas traseiras do bonito Palácio Sotto Mayor para contar as tal palmeiras e aproveitei ainda para espreitar, a alguma distância (vejo mal ao perto, não ao longe, e isto é tão intrínsecamente verdade que me apetece franzir o sobrolho), se haverá algum andaluz à solta no largo em frente a minha casa (há uma magnólia e está quase a florir).
Há dois lugares de estacionamento fora das garras da EMEL junto ao Hotel do Palácio meu vizinho, mas a sorte protege os audazes. Azar ao amor, sorte ao estacionamento: hoje quero um lugar à porta de casa, demónio em-vias-de-ser-anjo do estacionamento, porque tenho o carro cheio de roupa passada e bem-cheirosa, direitinha, pendurada em cabides fininhos de arame, mais de quinze quilos de roupa que tenho que levar para cima - são 13 degraus, depois dois, depois quinze e depois quinze e dezasseis, isto a descer, a subir são bem mais -, quero lugar em frente aos números pares da porta do prédio centenário que me escolheu para ir lá viver, mereço lugar à porta, as putas literárias são descartáveis, escravizam-se por um quarto de ano, e depois são dispensadas pela que se segue na fila, e só por isso, por ter dado o meu melhor a quem não lhe dá o devido valor, quero e vou ter lugar de estacionamento à porta (porque é que eu lhe fui cantar o poema do Pessoa?).
Nada. Nem uma nesga onde caiba um smart for two.
A luz do vizinho do primeiro andar esquerdo do prédio gémeo da frente - que tem tectos baixos e de madeira e não gigantes como os meus de estuque - é sempre a única que está ligada, vejo o varão da cortina de banho e na porta colada uma folha A4 que diz "shit happens". Vejo mesmo bem ao longe, estou parada em frente à minha porta e não há lugar, vou ter que dar uma volta enorme e deixar no largo que tem 3 palmeiras que o baptizaram, mas o meu vizinho do restaurante abre a porta de alumínio e diz: Vizinha, vou sair, quer o meu lugar?
Sorrio ao engatar a marcha atrás. Em frente. Mesmo em frente. A sorte protege os audazes e isto não é um filme do Jeunet: é a minha vida, às vezes feliz, muitas vezes triste, mas sempre fantástica e digna de registo.
A Carolina fez 23 meses hoje e o sopro que uivava forte no seu coraçãozito descompassado de amor, grande como o da mãe, deixou de assobiar, foi soprar para o mar, foi enrolar ondas para os surfistas (esta é do poeta).
A Carolina não diz nada, fala um dialecto entre o ucraniano e o búlgaro, mas todas as noites, chegamos depois das dez da noite, subimos os 13 degraus, depois os dois e ela cumprimenta as flores gigantes com as quais a minha vizinha alentejana decora os patamares velhos e decadentes da mãe da minha Martinha. De manhã diz: Olá flores. À noite: Tchau, tchau, flores, dá-lhes uma festinha e um beijinho repenicado nas folhas.
Chegamos à porta de casa, eu com os bofes de fora, e tchau, tchau, piu, piu, diz ao emblema da mundial que guarda a nossa casa de tristezas de maior.
Deitei o anjo loiro que se constipou no dia em que foi ao pediatra e o dr Espinoza não me deu a piçada que estava à espera por me ter esquecido de uma vacina. Naquele mesmo apartamento de oito assoalhadas, nos prédios bonitos de esquina da Estados Unidos com a Avenida de Roma, onde há vinte anos atrás me aliviava as anginas semana sim, semana não, o médico doce confirmou que a minha Lina vai ser uma loira alta e espadaúda - mantém-se de pedra e cal no percentil cem, apesar de ter nascido no percentil 15, muito pequenina e frágil, 47 centímetros de gente, há quase dois anos, no dia de nossa senhora da Conçeição, faça sol e chuva não.
Liguei as luzes com libelinhas do quarto de princesa, agarrei no Cilit Bang e no esfregão turqueza (que moderno!) e apaguei as marcas das paredes, as marcas de amor que ficaram impressas numa madrugada de Verão e que teimei em deixar tatuadas no hall da Martinha, como se por esse gesto - outro gesto da minha total e abnegada entrega -, só por perpetuar umas manchas escuras na parede alva, como se ele voltasse só por isso.
Tchau, tchau, flores.
5 comentários:
tão trivial, tão simples, tão codificado e íntimo, tão explícito e revelador.. parece que te despes à nossa frente com palavras de um dia cheio de "coisinhas" que insistem em fazer-nos sentir vivos.
é isto que, a estas horas, consigo dizer sobre a tua escrita... é o que sinto.
Como, minha querida? Como posso eu sequer comentar? A Carolina, e o vizinho e todos os que te fazem felizes deviam ganhar prémios todos os dias. E dizer poesia em vez de frases banais.
O vocabulário do nosso anjinhos endiabrado é muito mais vasto... nós é que não percebemos. Tenho a certeza q ela criou uma lingua própria em que fala com os bichos e as plantas. E um dia, para além dessa há-de dizer mais coisas em português. Tia Mónica, Móquina, Mó, Tia, qq coisa... q para além do sorriso que faz qdo me vê, me faça acreditar q sabe quem eu sou e qto gosto dela.
é delicioso ver a carolininha a dar beijinhos nas flores e a cumprimentá-las...
os rapazesa das SONDAGENS digosoldagens ao cerebro pensamque o povo e estupido! vejam as ultimas sondagens tanta mentira! quem paga esta merda! Ta tudo contente c omentiroso-. Olhase fosse o santana lopesafaxeristo?
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