Valsinha (sabes que dia é hoje?)
[17 minutos para a meia noite. Hoje é um bocadinho mais cedo, porque estou cansada e de certeza que só amanhã saberei se foi um dia bom ou um dia mau.]
Acordo com beijos da loira pequenina, beijos brutos, acordo estremunhada - como é que ela está em cima da cama, aos pulos, na metade imaculada onde nunca ninguém dorme, a metade que eu nunca trespasso com medo dos dragões que a guardam, como, se a cama é altíssima?
Fecho os olhos remelentos, eles pedem-me mais cinco minutos, apesar de me garantirem que ficavam mais bonitos se dormissem mais duas horas, fecho-os, porque ela continua beijoqueira frenética, rio-me, digo com a minha voz nasalada da manhã: "franga, não sufoques a mamã de beijinhos!". E quando já estamos abraçadas e eu já tenho a cara toda lambuzada de beijos loiros, os olhos ainda fechados, os meus, os azuis dela já disseram olá às flores e ao pombo que mora na nossa janela (olá piu piu, ouvi eu muito lá ao fundo de um sonho que já estava a passar a ficha técnica), lembro-me que ela veio ter comigo a meio da noite, foi isso, ainda não aprendeu a escalar a cama que tem tido pouca sorte na vida.
Brincamos ao "monstro das cócegas" e ao "monstro dos beijinhos", são nove e picos, o caralho dos cães do prédio da frente ladram desalmadamente como se estivessem com um desarranjo intestinal, ou um osso de vaca enfiado pelo traseiro a dentro, todos os dias a mesma coisa, ladram como se as caravanas estivessem a passar, um barulho infernal que se ouve até na Universidade, ou no Hospital onde o João vai tapar o buraco do seu coração; ladram, e depois todos os outros canídeos da vizinhança juntam-se-lhes em coro desafinado, muitos decibéis acima do que deveria ser permitido antes das onze da manhã.
Na primeira semana em que dormi na Martinha, era o final de Junho, tinha Internet wireless, não tinha gás e a electricidade, tal como hoje, era roubada à EDP, os primeiros dias foram difíceis e disse muito mal da minha vida. As alimárias não me deixavam dormir e o diabrete loiro às sete da manhã já estava a pé, animadamente a chamar pelos ão ãos à janela. Ao terceiro dia, abri a janela, em desespero, eram oito e picos da matina, e gritei: calem-se seus filhos da puta!
Hoje em dia, já nem os oiço -- habituei-me aos bichos, que são feios, asquerosos, saem à dona, essa puta, soube-o antes de ontem na tasca do Hélder, foi ela que chamou a Polícia Municipal, foi por causa dela e dos seus bóbis sarnosos que o meu Alfredo lindo foi para a fábrica de sabão, puta, puta, puta, vai pagá-las bem caras, e hoje, coincidência ou não, vi-lhe as trombas pela primeira vez, e até já sei que carro guia... O Alfredo dormia em minha casa e durante o dia vagabundeava pelo Largo de Andaluz, tinha-o desparasitado e comprado uma coleira para as pulgas. Não fazia mal a ninguém, este cão ruivinho, toda a gente o amava (eu amava e lembro-me dele quase todos os dias; ainda tenho uma lata de comida de cão dentro da caixa do correio - quase nunca a abro porque me dá vontade de chorar) e recordamo-lo, saudosos, eu e o meu vizinho Hélder, o tal que tem umas madeixas loiras e que dá gomas de morango à Carolina todas as manhãs (às quais ela chama de "cúcus").
Habituei-me. A história de gritar filhos da puta pela janela foi apenas para criar boa vizinhança, porque sabia que ia dar ordens ao meu cérebro para os neutralizar, para assimilar os latidos histéricos dos animais do demo, foi assim que aconteceu quando me mudei para um 10º andar sobre Lisboa, demorei uma semanita a digerir o barulho da casa do elevador que morava por cima de mim.
A anja loira pós moderna pediu-me água, depois de muitas cócegas e muitos beijos dos monstrengos que encarno logo pela manhã ("água" é um conceito ambíguo: de manhã e ao final da noite quer dizer leite; durante o resto do dia é, efectivamente, água; mais difícil de descodificar é a palavra esquizofrénica com dupla personalidade "chão" - nunca sei quando quer dizer chão ou quando quer dizer colo), 30 segundos no microondas, plim, liga o Mac, abre o Gmail e tenho uma surpresa, já nem sabia como sabia bem ter cartinhas na inbox daquele remetente, uma prenda singela do meu "ex" (muito divertido escrever que és o meu "ex"; na realidade, és o meu "ex-futuro" - desculpem-me o recurso à segunda pessoa do singular; mas ele é uma das primeiras visitas do dia).
Assim do nada, depois de me partir o coração em mil quinhentos e cinquenta e um pedaçinhos, mandou-me uma prenda. Uma valsinha linda. Oiço-a, é deliciosa, e sei que a conheço. 30 segundos depois, lembro-me onde a vi. Fico triste (não posso dizer porquê). Fico contente (não sei mesmo porquê). Não sei o que é que fico. Ainda não sei o que é que fiquei.
Mais tarde, diz que o timing da sua surpresa matinal no meu Gmail foi o melhor que podia ter arranjado, sobretudo pelo dia que é hoje. Eu não sei que dia é hoje. Ele também não diz. Anda misterioso. Já não me conta nada, mas passa a tarde toda a namorar comigo à janela, para mal da minha produtividade e da minha tendinite. Hoje readmiti-o no messenger.
Ele vai negar, mas pediu para ser readmitido. De uma forma torcida, perversa, que parece que fui eu quem quis muito muito voltar a adicioná-lo, que não sabia viver sem ele na janela mágica, mas ele pediu, de um jeito desengonçado, mas pediu. Como quem não quer a coisa mas sempre a querê-la.
O ex-marido lindo vem almoçar comigo, paga-me a sandes porque estou falida, e faço-o rir com a expressão : "bater um couro literário" (nada mais, nada menos do que eu fiz com o meu "ex futuro"). Volto à redacção, encontro a senhora arquitecta linda que está de abalada para Luanda, desejo-lhe boa sorte, gosto dela, gosto muito, passo o cartão na entrada, os torniquetes giram, recuo, pergunto ao segurança: "Mário, que dia do mês é hoje?". Ele responde: "17". Passo o cartão outra vez, "obrigada, Mário", vou a rir-me sozinha no elevador e, como já vem sendo hábito, carrego no segundo em vez de no primeiro piso, saio, chamo outra vez o elevador, desta vez vou para o piso correcto, sento o rabo na cadeira e escrevo-lhe: "Já sei que dia é hoje. Fazemos quatro meses".
(continua amanhã, porque a tendinite já está a ficar assanhada)
9 comentários:
ai ai...estava a ir tão bem e descarrilou porquê?
Adoro saber histórias do diabrete loiro... É tão bom acordar toda lambuzada e com festinhas na cara... :) Imagina 3 a fazerem-me isso! É claro que são irmãos mas não deixam de ser os melhores acordares que tenho...
Continuas a dizer que a tua vida é insignificante? Louca!
Que valsa??
Isso não se pode saber. É segredo, senhor anónimo arraçado de gato (a curiosidade matou-o, sabia?)
Gostei do arraçado de gato. Do senhor nem tanto, mas está correcto. Presumir que sabemos é também um risco, mas divertido. E antes da curiosidade há a provocação. E funciona! - Para prazer de ver a escrita, claro. Sem má inclinação. Gosto bastante de passear neste blog de uma mulher curiosa, e estranha. E obrigado. E desculpe. Só a escrita cifrada, para mim um anónimo quase total, tem francamente menos interesse. Mas gosto muito das imagens, mesmo das mais agressivas. Votos de boa valsa. Dance bem, porque pede o mesmo do par. A valsa, é o menor dos elementos.
A escrita, por vezes, tem que ser cifrada, mas está tudo lá, só tem que se saber ler nas entrelinhas. E desculpa o tratamento formal, mas a Magui sempre me ensinou a tratar por senhor/ senhora quem eu não conheço.
Suponho que gostes das imagens escritas. São as melhores.
Agradeço a atenção lida e escrita à minha intromissão. Há prazer nas imagens escritas e outros prazeres nas outras imagens. Um blog é pessoal e menos público. Portanto é de esperar cifragens que, quem vem de longe não entende. Compreendo. Não tenho o interesse de espreitar a vida de uma desconhecida, antes descobrir que sentidos dá. (A valsa poderá ser de Amélia?)
A valsinha não é a da Amélie, por acaso não é. Mas podia bem ser, soa a Amélie e por isso é que eu gostei tanto. Há quatro meses, tocava nesta sala a valsa da amélie.
E não há vergonha nenhuma de espiar a vida dos estranhos. Se eles a publicam na Internet, sobretudo.
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