segunda-feira, novembro 07, 2005

Up side down

up side down

Uma hora e meia com o "Lá em baixo" do Sérgio Godinho em repeat one - estou a ficar preocupada, gosto de Saramago, estou a ouvir uma canção da ressaca do 25 do 4 de 74; não me sai da cabeça: "toda a gente passou horas em que andou desencontrado, como à espera do comboio na paragem do autocarro" -, aparelho de contenção ortodôntica transparente enfiado nas mandíbulas (agora me lembro: tenho que tomar a pílula) e a única coisa que sai do Ibook voador é um título bem esgalhado e a foto que fez com que ele surgisse, a foto de pernas para o ar, up side down, a foto que pretende causar torcicolos aos leitores ávidos de informação gráfica.
Uma hora e meia e nem um cigarro a massacrar-me o lábio carnudo que está sempre ferido pelos filtros que lá se colam e me arrancam uma camadinha quase invisível de pele. Uma hora e meia (já lá vão quase duas) e um poeta fala comigo na janela mágica do messenger, um poeta que sigo, por acaso, desde que começou a história, a história que, no outro dia, chegou ao fim, a história que deixou tudo de pernas para o ar, em pantanas, a história cujo fim foi anunciado ao primeiro mail por cornetas e tubas douradas desafinadas (12 de Julho, 13h02: obrigada pelo convite, senhor padre. Não sei se será aconselhável almoçar contigo. Eu já tenho uma coisa platónica meio louca por ti, e eu sabia do que falava, a avó Zá passou-me o dedo mágico que adivinha, mas o dedo mágico está minado de artroses, vóvó!).
O fim da aventura foi sendo sucessivamente adiado, porque eu não abri a porta, pedi pelo intercomunicador a senha secreta e o carteiro respondeu sempre "correio", e eu, chateada, quase piursa, dizia: ò senhor, essa não é a palavra-passe, não vou poder abrir a porta, e ele insistia sempre com a mesma lenga lenga, dias a fio, não gosta de jogos, na escola gozavam-no porque ele não resolvia os mais simples problemas das lições de matemática, não é bom em enigmas e em charadas, nunca foi, não dá para os estudos, disse logo a professora da primária, gosta da vida simples, de andar pelas ruas a passear, sem sobressaltos, sem dores de cabeça, sem fogo e sem gelo, e de uniforme cinzento, como a sua vida das 7 às 15, depositou a caixa do correio castanha escura, a única do prédio que tem um autocolante amarelo a proibir publicidade - e eu que gosto tanto de receber semanalmente a Dica do Lidl, a cadeia alemã que às vezes vende vestuário e acessórios para cavalos e é, sem dúvida, a coisa mais mal parida de todo o panorama editorial do país, gaita, gaita, tenho que desfazer o autocolante, empapando-o com álcool etílico -, a caixa castanha onde encostei o indivíduo da aventura, numa sexta-feira longínqua, entre beijos e uma alça de um vestido também castanho que teimava em deixar o ombro direito nú, a caixa de correio que abre com dificuldade porque a chave está empenada, a caixa de correio que tem lá dentro uma lata de comida de cão, do tempo em que o Alfredo ainda não era sabão azul e branco da Clarim, o carteiro deixou lá uma colecção de avisos de recepção, papelinhos cor-de-rosa que ignorei. (Depois veio o oficial de justiça, com a polícia, eu fingi que não estava em casa, deixaram um papel colado nas caixas do correio castanhas, foi na quarta, assim acabou a aventura.)

Três horas e meia depois, já queimei os lábios com vários L&M azuis (hoje comprei este tabaco, numa singela homenagem ao mestre blogueiro JPH, que me atura diariamente, que vê os meus olhos inchados de choro e pergunta quando eu entro, escancarando a porta: Qual é o dramalhão de hoje, Ralha?), falei da origem etimológica das palavras com o poeta, desassossegou-me a reflexão sobre esta em particular: assimetria, que não é o inverso de simetria, expliquei-lhe as declinações de Latim, que uma palavra pode ser declinada de seis formas diferentes, conforme a sua função numa frase (sujeito, predicado, complemento directo, indirecto, and so on), falámos de tudo, a Qui Qui apresentou-mo numa noite difícil, eu pedi-o em casamento, e a certa altura o messenger fez greve, os carros do lixo andavam lá fora a fazer uma rave, é tarde, são quase três, quer dormir o programa preguiçoso da Microsoft, e deixou de me entregar as frases do poeta. Foi então que tivemos um diálogo surreal, com ele a mudar de nick name de dez em dez segundos para responder à minha curiosidade felina, na impossibilidade tecnológica de me fazer chegar as suas instant messages.
Eu disse que se esperava tudo. Tudo de bom, tudo de mal.
Não se esperava tão cedo, porém.
Nem se esperava esta noite e um post deste género alucinado (só fumei tabaco, juro!)

4 comentários:

Mary Lamb disse...

O regresso glorioso!!!
Ando distraída, mas agora que a minha janela se fechou, e não era janela, era telefone e gastei uma porradA de dinheiro, porque alguns poetas estão longe como o raio...Agora, a esta hora miserável em que devia dormir e não consigo, vim aqui espreitar, e vi. Voltou! A Musa voltou, e veio para ficar!

Dia disse...

E porque não? o pior que pode acontecer é ter que te bloquear se fores um tarado. Cá vai: dralha@hotmail.com

SGTZ disse...

Em grande....alucinações em formato blog!!!
Essa conversa do tabaco é escusada, todos sabemos que podes ter escrito com as "ondas de choque" de outras sessões...

Unknown disse...

um pouco de esquizofrenia nunca fez mal a ninguém... um "estado assimétrico de consciência" é o que eu lhe chamo... quanto à rave dos homens do lixo, foi pena não me terem enviado o convite.. numa noite de impossibilidades técnicas, queria embebedar-me... mas o latim foi o bastante...

*