quinta-feira, janeiro 26, 2006

Amores perfeitos [no pretérito-mais-que-perfeito do Indicativo e na terceira pessoa do singular]


[Reeditado]

Levara a vida à espera daquele dia: sonhara com os olhos bem abertos, com um olho mais aberto que o outro, porque no dia em que nascera, o último dia do signo caranguejo, a simetria estava de férias, a banhos, no Algarve a dourar; sonhara estender amores perfeitos à janela, com a mesma naturalidade rotineira que a vizinha da frente, do terceiro andar esquerdo, estendia cuecas de gola alta, em cordas de nylon, pela manhã.
Nunca tivera jeito para os singelos e delicados viola tricolor e não vivia bem com essa incapacidade, lembrava-lhe sempre o dia em que entrou para o colégio e era a única da turma que não sabia fazer cambalhotas, nos tapetes verdes de pele do ginásio bafiento de uma moradia da avenida Almirante Gago Coutinho, uma moradia enorme, onde, à entrada, como não tinha amigos, falava baixinho com uma palmeira muito velha, acariciava o seu tronco e às vezes tentava-a abraçar, mas faltavam-lhe braços.
Mas isto era quando se certificava que ninguém estava a olhar - há quem diga que o seu amor pelas árvores começou aí -, isto era numa moradia na qual pintou as paredes do jardim de infância dos meninos um pouco mais pequeninos do que ela com os seus desenhos geniais, a pedido expresso da directora, que a dispensou das aulas para se dedicar à pintura das paredes brancas dos pequeninos, e nessa tarde saíram todas as imagens que tinha na sua cabeça. A directora soubera, desde que a admitiu a meio de um ano lectivo, soubera que aquela menina triste, de tranças enormes, que acabara de perder o colo macio das suas duas avós, soubera logo aí, que lhe esperava um futuro brilhante. Era mesmo assim.
Lembrava-se da humilhação, de dizer ao professor Geraldes, ex campeão de Judo, entre lágrimas, que não sabia fazer cambalhotas. Nem a roda. Muito menos o pino. Uma vez por semana, tinha pesadelos. Teimava com a sua mãe solteira, na altura secretária de direcção, que estava doente, que não podia ir à escola. Irremediavelmente, a mãe mandava-a para a carrinha com um fato de treino turqueza; apanhara-a a aquecer os termómetros na lâmpada da mesinha de cabeceira e, desde então, parara de se preocupar com os febrões com data marcada da sua filha mais nova.
Mas, durante muito tempo, acreditou nos poderes da espada dourada da boneca She-ra. Gostava mais da má da fita, da Catra, que se vestia à gótica, de preto e beringela, mas usava a espada da loira boa da fita, a irmã do He-man, para fazer magia. E durante três meses, não houve ginástica e ela acreditava piamente que era por causa daquele pedaço de plástico, não sabia o que era uma ruptura de ligamentos.
Mas um dia, a sua gata siamesa, que se chamava Íris, uma gata má como as cobras, roeu-lhe a espada da She-ra. E ela chorou, desesperada, não ousou, sequer, explicar qual a razão de tamanho pranto à sua mãe, que, na altura, não era uma fada do lar, que, às vezes, também tinha homens na sua cama comprada na Octógono, e que, ao jantar, fazia sopas instantâneas da Knorr (ela sempre gostara muito da sopa de rabo de boi, na altura, já era muito gráfica, tinha uma imaginação esquizofrénica e de nada valia a sua mãe loira, de pele de porcelana, lhe explicar que rabo de boi era uma forma de dizer. Sim, gostava da palavra tutano, mas não aceitava que a sopa fosse de tutano, era de rabo de boi, a imagem era grotesca, mas ela gostava muito da sopa avermelhada da multinacional do galo).
O professor Geraldes, claro, voltara depois do acidente felino. Tinha que ter sido assim. Nunca perdoou à sua gata pela quebra do feitiço. Mas aprendeu a dar cambalhotas com o seu primo Hugo, num jardim da Estados Unidos da América, por debaixo de um plátano que foi cortado há muitos anos. Foi a melhor da aula de ginástica. Fez o pleno. Era a melhor em tudo. Era mesmo assim. Foi sempre assim. Há-de morrer assim. Quando mete uma na cabeça, não descansa até ser a melhor. Até nas coisas mais improváveis, como as cambalhotas e os pinos.
Passava, então, a vida de cabeça para baixo, com as pernas apoiadas na parede, foram muitos anos assim, o sangue subiu-lhe ao cérebro e nunca mais foi a mesma. E houve uma altura em que era viciada em equações, e gostava muito de gramática também.
Foi insistindo com os amores perfeitos. Se havia sido a melhor a ginástica apesar das pernas roliças que herdara dos genes do seu pai quase incógnito, um dia iria ter jeito para amores-perfeitos.
Estava tão determinada que, quando salvou uma dúzia de vasinhos de plástico de uma morte certa num supermercado, lhe apeteceu conjugar todos os verbos no imperativo afirmativo. Mas depois lembrou-se - era sempre assim, um reservatório de inutilidades, mas isso era sindroma de família, corria-lhe nas veias, misturado com um sangue fluorescente - que o imperativo afirmativo não possui a primeira pessoa do singular e ela estava a enlouquecer, é certo, cada dia que passava nas folhas da agenda, era mais um passo para o abismo, ela sabia que já não era muito certa, mas ainda não falava de si na terceira pessoa do singular.
De noite, pensava muito, tentava não se analisar, tinha-se em muito má conta, dizia ser uma má pessoa, era o seu cartão de visita, acreditava piamente que se gostassem do seu lado negro, seria mais difícil resistir à pureza que não teimava não sair dentro de si, apesar das sucessivas ordens de despejo, remetidas por carta registada com aviso de recepção.
Mas temia ser uma maldição, e quando começara a atrair homens impotentes, ou mesmo imbecis (gostava mais dos impotentes do que os imbecis, ainda assim), vira um sinal na morte prematura dos amores perfeitos nas suas mãos.
Durante alguns anos, refugiara-se nas heras e nas orquídeas da sua sacada pombalina. Mas não esquecera os amores-perfeitos. Era romântica, gostava da poesia das coisas pequenas. Era mesmo assim. Foi sempre assim. Será sempre assim.

Esperava pouco da vida e a vida teimava eu não a largar. Sonhara estender amores perfeitos à janela. Sonhara conjugar um amor perfeito no pretérito mais que perfeito do indicativo.

E um dia a maldição acabou. As flores, pelo menos, estão na janela; e o amor andará à solta onde menos se espera.

24 comentários:

Anónimo disse...

que bonito mana! que bonito!

Mary Mary disse...

Acredita que o amor vem mesmo quando menos se espera... Continua a cuidar desses amores perfeitos que tanto gostas... :)

Mary Lamb disse...

Também gosto mais de homens impotentes, Mas gosto mais de ti. E hoje fiquei muito aliviada.

Anónimo disse...

Perdoe-me a expressão, mas foda-se! Foi das melhores coisas que alguma vez li. Obrigado.

Anónimo disse...

Um dos melhores!
Não sei porquê, mas há 15 anos atrás tb comia (e gostava) da dita sopa... e da Minestrone...

Anónimo disse...

Palavras que fazem pele de galinha. Palavras de amor e vida. Na terceira pessoa do singular ou simplesmente na primeira continuas a ser uma escritora de mão cheia. Gosto de ti e desculpa se ando ‘seca’, ou determinada, há coisas que doem mesmo não sabendo porque.

Lcego disse...

É por textos destes que venho aqui de manhã e de tarde... com a mesma regularidade com que ía à fnac ou outras livrarias do chiado. Aqui na Serra este blog é o melhor do quiosque!

INTER disse...

Depois de ler o que se escreve por aqui, até fico mal impressionado com o que eu escrevo. Passo por aqui várias vezes ao dia, só para poder ser dos primeiros a ler cada linha, cada frase, cada palavra que tu escreves.

Dia disse...

Meus caros comentadores,
Muito grata pelo feedback. Ficou, de facto, muito bonito, gosto mesmo deste e, por isso, estou farta de o mudar. Quando o acabei, às três e picos da manhã, também me apeteceu escrever um palavrão. Vou escrever aqui o meu semi-palavrão favorito: CAMANDRO!

Unknown disse...

Ainda não li o post mas, antes de mais, peço desculpa por ter estado tão ausente desta "tralha". Só pelo título sei que vou gostar, só por ser teu, estou certo que vou gostar.

Outra coisa: a ti especialmente mas também a todos os comentadores interessados, vão ao JOGO e façam um comentário construtivo aos posts mais recentes publicados, é mesmo importante, de outra forma não estaria a fazer publicidade.

Ainda outra coisa: tens que me ensinar a pôr música no blog.

;)*bjs

Dia disse...

Caros comentadores,
O Branco é o meu esposo literário (infelizmente, uma sortuda de uma Catarina já o fisgou). Ninguém escreve como ele. Vão ao jogo sim: http://ludusalea.blogspot.com

Unknown disse...

agora já li. não posso deixar de dizer que se desenhou um sorriso (sobretudo na parte do He-man) e escorreram lágrimas secas de felicidade pelos amores-perfeitos às cambalhotas na sacada pombalina. é esta intimidade disfarçada que adoro nos teus textos. quem te conhece vê-te ali, quem não te conhece revê-se de algum modo. eu conheço uma pequena parte mas imagino todas as outras ao viajar pelas memórias literárias do teu amor pelos plátanos cortados.

Má pessoa? não é para dar graxa, mas não consigo ver nenhuma maldade, se calhar estou literariamente cego de amores. se assim fôr, oxála sejam perfeitos, mais que perfeitos: idílicos como um jardim do Éden cheio de amores-perfeitos (e violetas também que simbolizam, para quem acreditar, tranquilidade e pureza).

mts bjs...

;)*

Anónimo disse...

Gosto. Gosto tanto que me leva a fazer uma pergunta que vai até parecer estúpida, bem, a pergunta é mesmo estúpida, mas não resisto, sou assim meio parvo, às vezes penso que vejo mais que os outros, que consigo olhar por entre pequenas palavras ditas ou escritas de alguém que não conheço e descodificá-las. Assim como se espreitar por uma fechadura se tratasse. Ah, a pergunta, pois: em pequena leste o Chocolate à chuva ou o Rosa, minha Irmã Rosa? Leste, não leste? Por favor diz que sim.

Dia disse...

Lamento. Não li. Nunca li nada da senhora Alice. Depois havia o problema de ela ser comuna e nós lá em casa nunca lidámos bem com as edições da Caminho. Quando era pequena lia Boris Vian.

Anónimo disse...

Percebo. Mas também não é por aí. Afinal estava escuro do outro lado da porta. Será Brassens? Ou melhor, o que te fez escrever assim? Quando é que pisaste a linha do medo?

Dia disse...

Um homem fez-me escrever assim. Um homem que acredita em mim e que não me quer levar para a cama. Eu fui sempre assim. Precisei sempre de um empurrão.

Anónimo disse...

Há muitas maneiras de nos despirmos. Escrever é apenas mais uma. Continuo às escuras. Esquece. Novas dúvidas nasceram, isto parece não ter fim, já não é o que aconteceu para decidires tocar nos outros, mas como é que “uma conservadora” se protege quando escreve para os outros? Complicado? E como protege os que a rodeiam? Ou melhor, como é que se protege dos que a rodeiam? Esquece. Domingo compro a Pública para ver o Post, depois faço novas teorias. (Bem, reli este comentário antes de enviar, parece tirado da XIS! Livra.)

Dia disse...

o "post" sai no PÚBLICO, no caderno Local. Infelizmente não sai na Pública. Gostei de ter por cá. Volta sempre que quiseres.
E tens um email aí para tirar as dúvidas todas.

Anónimo disse...

Engraçado, apenas leste a parte menos interessante do meu comentário.
Tens a certeza que vês os emails?

Dia disse...

Vejo pois, acabo de fazer refresh e nicles, e li o comentário todo, por isso é que mandei a deixa do email. É um prazer falar do strip tease da minha escrita.

NUNO FERREIRA disse...

muito bonito, Diana, gostei muito

Anónimo disse...

Jantar feito.
Cozinha arrumada.
Ao computador.

Anónimo disse...

Foi a carta mais linda que já me escreveram.

Dia disse...

Até que enfim que o anónimo reage. Mais vale tarde que nunca.