sexta-feira, janeiro 27, 2006

Da sua laia

Conhecia muito bem os da sua laia. Era feita da mesma matéria. Tinha degenerado um pouco, gostava de acreditar que tinha degenerado, ou regenerado - era como a história dos copos, se estam meios vazios ou meio cheios, depende se é um maníaco ou um depressivo que está a olhar para o copo -, que apenas parte de si vivia à custa de sugar emoções.
Era gulosa, mas empanturrava-se com chocolates sempre que lhe surgiam repentinos desejos incontroláveis de devorar sofregamente o melhor que há em cada um.
Acreditava que era moderada - nunca fora moderada em nada, era adjectivo que fazia ricochete em si, iludia-se, portanto -, que tinha apenas um distúrbio alimentar que ainda não tinha sido identificado ou publicado nas revistas científicas que às vezes gostava de ler. Gostava de pensar que deixava sempre um pouco, um restinho, qualquer coisa, queria acreditar nisto, repetia-o em voz alta, com determinação, como que a empinar a tabuada dos nove, que não sugava tudo e todos os que estavam ao seu redor, que não os atraía a si apenas para isso, como um implacável e frio predador.

Conhecia bem os da sua laia.
Adorava a expressão "vampiro de emoções".
Ouvira-a tantas vezes da boca de uma senhora loira, uma inocente vítima de um desses espécimes, e imaginava a cena da mordidela fatal, inspirada num filme de Ed Wood. O seu pai era mais feio que o Bela Lugosi, não tinha ar de húngaro, mas sim de monhé com carapinha, mas imaginava a cena assim, com uns cenários manhosos a desfazerem-se no momento em que os caninos "rilhões" do vampiro - que para si e para os seus irmãos passaram misturados nos genes; ela tinha conseguido camuflar o aspecto vampiresco com recurso à ortodôncia e a uns belos milhares de euros -, aferroavam o pescoço esguio, leitoso da sua mãe, até não sobrar nada.
Isto tinha sido há três décadas atrás. Há mais de três décadas atrás. Ninguém tinha vontade de se lembrar, ninguém sabia ao certo. Não tinha graça nenhuma, mas o que vem aqui para o caso é que a vítima continuava vazia, seca, não tinha havido lugar para uma miraculosa regeneração, ela pensava muito nisto, quase tudo regenera, porque é que a trinca do vampiro de emoções era irreversível para todo o sempre, como uma imuno-deficiência?

Já não havia o oitavo andar. Haver havia, mas morava lá a ex-tia que, para si, seria sempre a mulher de queixo e nariz proeminente e verruga colada à narina direita que lhe oferecera o seu primeiro eye lyner, tinha ela 14 anos. O jardim de inverno já não tinha paredes rugosas pintadas de verde, o chão já não era de mosaico preto. Evitava entrar em casa da tia. Doía-lhe o apartamento desfigurado, transformado numa toca indiferenciável de tantas outras, a puxar para o novo-rica e que havia sido paga, integralmente, pelo corno do seu tio de sangue.
Durante toda a sua adolescência refugiara-se naquelas cinco assoalhadas, 150 metros quadrados numa zona nobre da cidade, que a sua mãe, burguesa e péssima gestora de património imobiliário, utilizava como arrecadação.
Sacrilégios...
Sempre sonhara viver ali, com o fantasma da dona Julieta a beber chá na sala, a dormir no quartinho da empregada, a dona Julieta que era a velhota de cabelos pintados com um plix violeta que tomava conta dela quando as aulas do colégio acabavam e não havia ninguém em casa para lhe abrir a porta, a dona Julieta, que, juntamente com uma task force de vizinhos improvisada, a dona Ilda e o senhor Victor, substituíra os seus avós, os seus avós que, em menos de um ano e meio, decidiram morrer, em cascata, não deixando sequer o luto repousar uma semana descansado no roupeiro.
A vítima do vampiro mirrou até aos quarenta quilos por causa do tal do luto que se sentou de pernas abertas a arrotar, na melhor poltrona de um segundo andar onde viviam. E o preto também não fica bem às loiras, quer ela ressalvar, é raríssimo, assim como loiras ficarem sensuais com os lábios pintados com baton encarnado - parecerem todas umas putas -, e os vestidos até eram bonitos, tinham a cintura descaída, eram de voile de lã, comprados na Truz, uma loja pseudo-fina da Praça de Londres, onde hoje é um antiquário que dá ares de lavagem de dinheiro.
Ela lembrava-se de a sua mãe vampirizada passar os cheques que compraram os tais vestidos pretos e também uns sapatos de camurça da mesma cor, com uns laçarotes. Lembrava-se de tudo, era um fenómeno, nesse dia decorou o bilhete de identidade da senhora loira que definhava de desgosto, 1260756, e ainda se lembra de uma saia com umas florzinhas brancas que mal de notavam, que, ao longe, mais pareciam bolinhas.

Já não havia oitavo andar. Nem jardim de Inverno. Passou a sua problemática, chorosa e semi-suidida adolescência ali, entre caixotes de recorações empoeiradas e húmidas. Gostava de fotografias de família. Revoltava-se por estarem ali desterradas, abandonadas. Talvez por isso, hoje em dia, resgatasse fotografias dos mortos dos outros em alfarrabistas e na Feira da Ladra.
Um dia encontrou numa caixa as cartas tontas de amor, da vítima de porcelana ao vampiro de emoções. Ainda hoje se questiona como é que isto pôde acontecer. Como é que a mulher loira, boticelliana, apaixonada, romântica, tola mesmo - isto reconfortava-a de certa forma, saber que era igualzinha à sua mãe, que apenas o tom de pele, do cabelo e dos olhos era o oposto - se deixou mumificar pelo vampiro.
Conhecia bem os da sua laia.
Temia ser uma deles.
Tinha teses muito bem montadas na cabeça. Dogmas que aceitava abnegada, sem discussão, e isto era raro, era do contra por natureza, só para chatear. Só aceitava porque eram suas, mas às vezes não tinha ninguém para contrariar porque era muito só e podia virar-se contra todas as suas premissas. Mas não. Acreditava mesmo nelas.
Gostava pouco de carneiradas, por isso é que não pertencia a nenhum clube, partido, nem mesmo à maçonaria, que até seria bem bom para conseguir um emprego onde trouxesse mais dinheiro para casa, para evitar viver no limiar da classe média (detestava gente pobre. De espírito). Por isso, desenvolvia teses surrealistas, que não lembravam ao menino Jesus, para que não surgisse uma cambada de fervorosos fiéis a segui-las, a apropriar-se da propriedade intelectual privada de outrem (isto lembrava-lhe as ocupações dos comunistas no pós 25 do 4 e só de pensar nisso ficava com pele de galinha e com aquela estranha urticária que lhe aparecia no rosto sempre que rebentava com os níveis altíssimos mas, ainda assim, toleráveis de stress).
Se não fosse uma preguiçosa, gostava, um dia, de conseguir desenvolver vários projectos científicos fulcrais para a humanidade. Entre os quais, a morfologia dos filmes pornográficos.
Era fixada pelo formalista russo Vladimir Propp, queria aplicar a sua teoria da Morfologia dos Contos à indústria porno. Defendia que, todo e qualquer filme pornográfico, obedecia a uma estrutura narrativa linear, cronológica, pré-definida. De que outra forma se explicava, então, que a narrativa dos filmes pornográficos terminasse sempre com a esporradela do elemento masculino nas mamas ou na cara do elemento feminino?
Mas havia mais teses. Acreditava na banalidade do mal. Que qualquer um pode ser um assassino profissional. Que matar só custa, vá, às primeiras cinco vezes. Estava a ser simpática, a exagerar. O homem é naturalmente mau - a mulher também, mas numa dose mais fraca, se o homem fosse uma grama de Xanax, a mulher era 0,125. Para ela, matar passava a ser um hábito chato à terceira vez. Era um número cheio de misticismo. As suas teses nao tinham quaisquer fundamentos científicos, não era com o propósito de as validar que as elaborava. Elaborava estas premissas apenas para manter ocupado o cérebro. E como via sinais e simbolismo em tudo, defendia este número, o três.
Desenvolvera esta equação quando a sua mãe matava ninhadas de gatos, adormecendo-os em camas de algodão encharcadas em éter. Pouparam-na de participar no genocídio. Sempre foi muito protegida. Lá sabiam porquê. Era frágil, parecia um rochedo mas era uma lágrima da Batávia (não está com paciência para explicar o que é uma lágrima da Batávia, essa era uma longa história da sua infância, que revisitou num best seller, salvo erro, Booker Prize, do Peter Carey).
Aparentemente, era um pedaço de vidro inquebrável, ao qual se podia dar enxertos de porrada sem fazer mossa ou riscos, mas bastava uma pancadinha ao de leve no ponto nevrálgico para se desfazer em mil pedaços. Mas era um lindo espectáculo quando estilhaçava e, no Natal, partia bolas de vidro no centro de bricolage Aki só porque o barulho lhe lembrava a desintegração das lágrimas da Batávia.
Nunca arriscaram, nunca usaram testar o efeito desse beliscão, e pouparam-na à matança felina. Havia de sofrer muito pela vida fora, não precisava de começar tão cedo. Mas ela ouvia os miados. E chorava muito. E escrevia cartas a Deus, perguntava onde é que ele andava, enfiava-as no meio dos livros da prateleira da sala - um dia, alguém as há-de encontrar.
Chorava muito até se banalizar. Deixou de chorar com a morte dos animais, sentia-se um péssimo ser humano, quisera chorar quando o seu gato favorito, um gatarrão laranja chamado Red, morreu e não conseguiu largar nem uma gota para amostra. Quando assim era, punha-se a cortar cebolas. Induzia o choro desta forma (estava a enlouquecer, ela estava sempre a avisar que estava a enlouquecer).
O vampiro de emoções devia funcionar da mesma forma, conjecturava. Uma ferroadela para matar uma vida de emoções. E ela achava isto muito estranho, não desenvolvera ainda nenhuma tese porque acreditava que ninguém podia viver sem uma bela dose de paixão. Tinha que ter cautela, não queria ficar seca, queria aproveitar um pouco mais.
Conhecia muito bem os da sua laia.
E conhecia-se muito bem também. Podia esforçar-se para escrever na terceira pessoa do singular, mas não enganava ninguém. Era sempre sobre ela. Era noventa por cento dela, o que escrevia.

3 comentários:

[ t ] disse...

amore! mais um para pôr na mala de viagem. muito bom. agora vamos ao post que anda por aí nos quiosques.
beijo

Anónimo disse...

apanhas-me sem net e são logos posts de metro e meio.este tb vai para os meus favoritos.o post q saiu agarrado ao jornal comento qnd o puseres aqui

Mary Mary disse...

Uma palavra... Belissimo!!! :)