sexta-feira, março 31, 2006

Coração metade

O coração dela cavalgava, batia muito rápido, não desacelerara com os anos, era o mesmo ritmo frenético dos tempos em que os dias eram todos iguais e submergidos numa paz imensa, no ventre escuro e quente da sua mãe.
Não se esquecia nunca disto – duas dezenas e meia de pré-adolescentes coreografados, espontaneamente, num semicírculo perfeito debaixo da pimenteira, fizesse chuva ou sol, vestidos com o mesmo uniforme: fatos de treino coloridos de polyester e sapatilhas de pele sintética sem logótipos de marcas conhecidas que exploram mão-de-obra escrava e infantil a pisarem o chão de betonilha do recreio, e o professor, de cronómetro ao pescoço, entre as mãos, e isto tudo num silêncio enorme, e ela com dois dedos no pescoço, outros, quase todos os outros, com o polegar a premirem a veia do pulso esquerdo; ela a ouvi-lo a batucar não dentro do peito, mas na cabeça, junto às têmporas, sempre de bochechas muito rosadas, sempre a ofegar, sempre de olhos fechados.
E quando o professor acabava o minuto de silêncio durante o qual ela se refazia e meditava sobre os mais variados enigmas do Universo – por exemplo, porque é que a árvore se chama oliveira e ao fruto azeitona –, pedia aos pupilos suados para gritarem alto o número de batidas que tinham contado. Cem, cento e dez, no máximo, cento e vinte. E ela descontava sempre uma dezena de batimentos, porque tinha vergonha, e dizia cento e setenta.
E o professor abria muito os olhos, largava um “não pode ser”, agarrava-lhe no pulso, dava novamente corda ao instrumento que aprisiona o tempo, e contava por ele próprio. E constatava que ela mentia sempre, que aquele coração batia em compasso quaternário perfeito, mas sempre a rotação elevada, a cento e oitenta batidas por minuto, ao mínimo esforço físico ou emocional.


Vive-se bem com um coração velocista. Que dispara à mínima emoção. Boa ou má. Que quer saltar pela boca ao mínimo vão de escadas. É uma questão eléctrica, o coração. Tão somente, dizia ela sem lhe dar importância. Procuram-se almas gémeas; o segredo está em procurar corações compatíveis, atirava ela, também, justificando a solidão e a sua condição cardíaca.

Partilhou o corpo e a cama com dezenas de batimentos que, no calor das noites, aceleravam até ao seu ritmo e depois acalmavam, descendo abaixo das cem batidas – quando assim era, ela sabia que estava condenado, que de manhã era o adeus, até nunca mais.
Batimentos subtis, outras vezes fortes, lentos, rápidos e assim-assim. Tirava a prova dos nove da compatibilidade cardíaca, enquanto os corações dormiam profundamente ao seu lado. Ouviu de tudo. Encostava o seu melhor ouvido, o direito, ao peito que tinha estado espalmado de encontro ao seu e escutava (se tivesse consigo um cronómetro como o do professor, ainda melhor, mas nunca calhou).
Uma noite, como todas as outras, sem promessas, sem futuro, mais uma que não lhe acalmou o peito, escutava aquele coração quase distraída, mais atenta à conjugação perfeita da respiração com o “pum pum” do músculo. E ele parou de bater. Por instantes, ela congelou, desencostou o ouvido do peito grisalho e o seu coração disparou para perto das duas centenas de batidas aos sessenta segundos. Voltou lá, com jeitinho, para não o acordar (como se os mortos se pudessem acordar, pensou ela depois, quando num minuto o coração já só batia 122 vezes). Recomeçara a bater. Passou a noite toda a ouvir a arritmia, deliciada. E soube que ali estava o seu coração metade.

[Obrigada ao JRA por ter tido uma arritmia durante a hora do almoço e a ter descrito de uma forma tão bonita que me fez escrever este texto. Qualquer semelhança entre esta prosa e a realidade é pura coincidência. Eu hoje quero desligar-me totalmente dela - hoje estou além.]

quinta-feira, março 30, 2006

Leite com groselha

Todas as manhãs.
Todas as manhãs saio da cama, em dois passos mato o corredor estreito onde hei-de pendurar os mortos dos outros, a quem dou abrigo, recolhendo-os do abandono da Feira da Ladra, vou sempre de olhos fechados, como um cego de nascença que sente como ninguém o espaço, até ao chão de xadrez encarnado sangue de boi e ocre da cozinha. Não me magoo na ombreira da porta do quarto, que só abre até metade porque o chão cedeu ao longo dos séculos, já faço parte desta casa, sinto-me tão bem aqui, conheço esta casa de outra vida, e nesta assoalhada onde durmo - durmo poucas horas, é certo, mas ainda assim durmo, raramente sonho, porque nunca chego ao sono profundo. Nestes doze metros quadrados onde me deito todas as madrugadas, depois de escrever posts de pernas cruzadas em cima do sofá laranja, esquecendo-me de ligar a televisão encarnada, abrindo apenas o iTunes e os cordéis à música, durante mais de 80 anos serviu-se o almoço e o jantar, comemoraram-se mil aniversários e consoadas, e tinha que vir eu para subverter as rotinas em Santa Marta.
Desde que cá estou, desde que começaram as insónias - a culpa não foi da casa, foi de quem me veio visitar ao segundo dia -, ainda não passaram nove meses, nenhum bebé saiu do ventre de sua mãe e, no entanto, sobrevivi a uma mão cheia de desventuras, encontrei amigos no escuro do blogue, e ainda não pendurei cortinas: a vizinha apanha-me sempre em cuecas, porque eu não gosto de dormir com calças de pijama, gosto de sentir o linho bordado pela minha mãe na pele.
E só quando já estou a meio da cozinha, em transe sonâmbulo, é que abro os olhos, inchados, ramelentos, abro-os quando estou muito perto do pequeno frigorífico Aspes, bravo electrodoméstico que comprei a um colega do jornal que não vejo há tanto tempo quanto o que vivo por baixo do Marquês, por 50 euros, e desde então, desde 2002, o ano da ruptura, que ele me serve fielmente, sem lamentos ou queixumes.
Tiro o pacote de leite. Procuro uma caneca no escorredor inox. Verto sempre alguns pingos na bancada de mármore. De olhos fechados outra vez, tacteio à procura da garrafa de vidro fria, desatarraxo a rolha de latão que às vezes me corta os dedos, tinjo a brancura do líquido de cor-de-rosa, com groselha Altoviso e lembro-me de ti, avô. Todas as manhãs.
Mas tu ensinaste-me esta delícia, ainda era de noite, os galos ainda dormitavam, numa madrugada longa, distante e quente de Agosto. Desceste as escadas, que hoje não consegues desbravar, a desoras, preocupado comigo e com o Bernardo, era já muito tarde, e na tua casa, apesar de não gostares disso, nunca houve regras: devorávamos filmes que não eram para a nossa idade, jogávamos poker, esvaziávamos o bar onde mandaste colocar um painel de azulejos da Viúva Lamego com um Baco, fumávamos cigarros que o Zé Ralha nos deixava às escondidas, fritávamos batatas às primeiras horas da madrugada. E nessa noite, estávamos na copa a tentar recuperar o tempo que irmãos nunca deveriam ter perdido e tu desceste, cabelo em desalinho, muito encaracolado, de roupão de xadrês apertado à cintura.
E ensinaste-nos a delícia do leite com groselha.
E sinto-me desprezível, todas as manhãs, por não te visitar, por nem sequer ligar à empregada para saber se já falas como antes ou se ainda não consegues organizar o pensamento, sinto-me igual aos vândalos que tentaram matar o filhote do plátano que há 15 anos crescia junto ao cadáver da sua mãe, que tinha soltado as primeiras folhas muito verdes e muito tenras há dois dias atrás.
E tento refazer o meu mundo, admitindo para mim própria que há gente muito má, que é mesmo por isso que o mundo não cai, que é como o amarelo, o que seria dele se não houvesse quem gostasse dessa cor que só é bonita nas flores? Só assim posso viver sem angústias no peito, incorporando a maldade do ser, nunca a ignorando, nunca vivendo nessa ilusão e dentro de uma redoma, e tento salvar por tudo o que me é mais sagrado o pequeno plátano de dois metros e meio, com a Magui, perto da meia-noite; peço ajuda aos lobisomens, apesar de estar lua nova e de eles só porem pé na rua na lua cheia, e eles ouvem-me, guiando-me até a uma estaca de madeira que dava para matar vampiros, perdida num contentor de entulho, e desencanto numa gaveta da cozinha da Magui um rolo de fita-cola de selar caixotes de mudanças. E, enquanto endireito o pequeno tronco, e o prendo à estaca com a fita gomada, sei que não sou malha mal tecida, que não sou uma aberração, que não quero passar tanto tempo sem te ver, e apesar da distância que criámos entre nós, decido que vou passar para a outra margem do Tejo e dizer-te que todas as manhãs bebo leite com groselha.

Musa de estilo

Acho que, um dia, pedi ao FTA, para escrever no Mau Tempo, um post à la Dia. Ele nunca o fez. A Isa não sabia deste meu secreto desejo de plágio e fez-me a surpresa. Aqui. Muito bom. E eu sinto tudo aquilo que ela escreveu, ou não tivesse eu sentido o mesmo pelo mesmo senhor, no início, quando este blogue nasceu, e lembrem-se, senhores, que este blogue só nasceu por causa dele, e ao que sei, e isto é muito assustador, a mãe dele é minha leitora fiel.

Doa a quem doer, este tem que ser publicado. Foi o último.

Esperei pela meia-noite para ser segunda.
Esperei pela meia-noite e na minha cabeça já é uma da manhã, não gosto quando mexem no tempo e os dias curtos fazem-me mal. É uma da manhã na minha cabeça e ainda não preparei o meu remédio para dormir, uma mezinha que descobri por acaso e que, todas as noites, dá-me boleia até ao barco que me leva a um mundo diferente onde estás sempre comigo, onde não há fins-de-semana, nem noites solitárias na companhia de músicas tristes e maços inesgotáveis de tabaco; uma terra secreta, uma terra sagrada, que não está cartografada em nenhum mapa, não vem no Google Earth, podes pesquisar onde quiseres, pergunta aos Jeeves, ao Ambrósio, procura o mapa do tesouro no baú do sótão à vontade, perdes o teu precioso e preenchido tempo, mas tenta, que eu sei que és teimoso, que vais tentar encontrar a chave, que vais subornar funcionários da alfândega para tentares lá ir sem levar o convite VIP que te entrego todas as madrugadas; falo de um lugar que não é físico, é amplo, enorme, mas confortável, aconchegante, é solarengo e salgado, não há nenhuma fita métrica que consiga calcular a sua área, é só meu e teu.
As segundas são sempre dias difíceis para mim. Não tarda, detesto-as mais que os sábados.
Porque vens cheio de certezas, às segundas, de culpa, de remorsos. Vais enxotar-me como é hábito, repudiar-me, dizer que não podes, que não está certo, que isto e que aquilo, vais chamar-me querida, mas começar a semana com o pé esquerdo, a ferir-me o coração, e eu vou ter que me revirar, que me despir, aqui, ou no outro blogue, ou na janela muito indiscreta onde te mostro um corpo cheio de marcas, onde te cego com o que há de bom e de péssimo em mim, onde te prometo despudoradamente um mundo de prazer sem travões ou vergonhas; vou, de mansinho, puxar-te de novo para perto de mim, vou ser doce, vou ser meiga, vou ser o meu melhor eu.
Porque não me fazes uma surpresa? Eu não a mereço? Dá-me uma segunda com sabor a sexta.
Não me magoes esta segunda.

Algures na blogosfera, 31 de Outubro de 2005 [escusam de procurar, porque o blogue já não existe, e há caixas de Pandora que nunca se deviam abrir, porque abrem cicatrizes profundas que nenhuns pontos conseguem fechar]

[Ele chegou, na segunda, com humor de sexta. Não me magoou, bem pelo contrário, nunca vi a felicidade tão perto num dia de chuva torrencial. Dois dias depois, a uma quarta com sabor a segunda, depois do feriado dos mortos, este amor foi enterrado vivo]

Szerelem [porque o amor também se canta em húngaro]

Szerelem szerelem
Áztkozott gyötrelem
Míert nem virágoztál
Minden fa tetejen
Minden fa tetejen
Diófa levelén
Hogy szakisztott volna
Minden leány s legény.


[Amor, amor
Maldição do sofrimento
Porque é que não brotaste
Em cada árvore
Em cada árvore
Nas folhas de uma nogueira
Para que todas as rapariga e rapazes
Te pudessem colher]

Mert Én is szakísztottam
El is szalasztottam
Én is szakísztottam
S el is szalasztottam
Hej de még szakisztanék
Ha jóra találnék
Ha jóra ha szépre
Régi szeretõmre.


[Mas, porque eu colhi este amor
Fez-me logo falta
Fez-me logo falta
Fez-me logo falta
E se eu pudesse apanhá-lo outra vez
Se eu pudesse encontrar o verdadeiro, o mais bonito
O meu antigo amor]

S a régi szeretõmért
Mit nem cselekednék
Tengerrõl a vizet
Kanállal lemerném
S Tenger fenekérõl
Apró gyöngyöt szednék
S a régi szeretömnek
Gyöngykoszorút kötnék.



[E pelo meu antigo amor
O que é que eu não faria…
Eu escavava o fundo do mar com uma colher
Eu traria pequenas pérolas
E para o meu antigo amor
Eu faria uma tiara]


Szerelem, Szerelem, Marta Sebastyen (música tradicional húngara)

quarta-feira, março 29, 2006

Guinness

Em Julho de 2005, quando fixei residência na Rua de Santa Marta, demorava, em média, 25 minutos a acender o esquentador. Em Dezembro, recordo-me, ainda tinha a mesma marca pessoal, que quase me levou à loucura e à pneumonia de tanto banhos gelados a que me submeti por não ter a paciência de estar de castigo, com o polegar da mão direita em esforço, durante quase meia hora.
De há um mês para cá, tudo mudou, apanhei-lhe o truque, mas não foi pela via do diálogo que lá cheguei, nem pelas preces à santa da minha rua. Descobri-lhe o ponto fraco, sempre fui boa nisto, nas rasteiras. Negociação de conflitos está na moda, há cursinhos merdosos financiandos pelo IEFP anunciados todas as semanas no Expresso Emprego, mas eu gosto de pronunciar o meu nome à italiana (R-a-g-l-i-a), porque noutra encarnação fui mafiosa de certeza, e, daí, a minha fixação nas Berettas (graças a Deus já não guio o Frontera; era muito perigoso, cheguei a engatar a marcha-a-trás a um desgraçado que guiava um corsa comercial, cujo único pecado foi ter-me apitado porque não arranquei no micro-milésimo de segundo que se seguiu à passagem da luz encarnada para verde de um semáforo, e abri o vidro e gritei: "queres ficar sem capot, ò filho da p...?").
Agora, acendo-o em menos de um minuto. Hoje, infelizmente, não tive testemunhos, mas demorei-me apenas dez segundos e este é um recorde digno de registar no livro do Guinness, na categoria dos acendimentos de esquentadores a gás butano com o piloto estragado, feito tão estúpido quanto o maior pão com chouriço do mundo, ou maior largada de balões em barco rebelo.
Quer esta prosa sem nexo e de encher chouriços dizer que esta foi a maior alegria de um dia em que a Primavera se voltou a esconder por trás de nuvens cinzentas, e eu estou tão fora da realidade, que a meio da tarde - porque li no nick name de alguém que consta da minha extensa lista de contactos do messenger, a palavra eclipse -, perguntei à amiga "Malmequer": "vai haver um eclipse hoje?". E ela, pacientemente, com todo o amor do mundo, não disse: "Alzheimer, sai de cima da Dia". Respondeu: "Foi de manhã" e eu escrevi um "ah" de queixo caído.
Continuo a sobrevalorizar o sentimento começado por "A", e não entendo porque é que ele se esqueceu de mim. E da Dijei exbloguerThê, que passou a tarde a passar-me, ilegalmente, toda a discografia disponível do Anthony. O "senhor preta", como ela lhe chama. [Porque um dia, ela enviou-me o primeiro mp3 do senhor andrógena, e eu fiquei passada, com o "hope there's someone who'll take care of me, when I die", e perguntei no messenger: "Thê, de quem é aquela música que me enviaste". E ela não sabia de qual é que eu falava, na altura, já me bombardeava o Gmail com playlists que me embalam as tardes de trabalho, e eu disse-lhe: "é uma cantada por uma senhora preta, parece-me". Pois é um gajo (pelo menos tem pilinha, apesar de não ter aspecto de quem lhe dá muito uso, a não ser para fazer xixi) e é bem branquinho.] E porque é que o nobre Amor, foge, também, a sete pés, da amiga Malmequer, que é a mulher mais bonita que eu já vi, de cara angulosa, olhos asiáticos, cabelo de francesinha coquette, pernas de sonho e coração generoso.
Nada disto faz sentido e eu hoje não tenho absolutamente mais nada a registar a não ser que acendi o Vulcano em menos de dez segundos.

Fim da aventura

Seguiu-nos sempre de longe. Mas esqueceu-se que estou presa à realidade, que vejo coisas que mais ninguém vê, que sou da pior laia, que topei a sua sombra na esquina de uma rua estreitinha, de trânsito condicionado, enterrada pela pose altiva da velha Sé e da muito esconsa capela do Santo António (onde, há mais de dois séculos, as moças imploravam por um marido e colocavam o Santo de castigo, a um canto da cozinha, a olhar para a parede, quando ele não cumpria, no bailarico de Verão, no pátio do bairro, a sua tarefa simples de casamenteiro).
Esta prosa, quando nasceu, prematura (teve que estar ligada a fios e sondas porque não conseguia respirar e viver por si só; nasceu roxa, muito pequnina, era apenas aquela primeira frase lá de cima), no Beco dos Desaires, freguesia do Desamor (que fica na cidade velha da minha mioleira, a das casas com assoalhadas minúsculas, ruas estreitas de passeios onde não passa uma criança e onde há roupa a pingar água nos estendais, enquadrados por floreiras de sardinheiras encarnadas), tinha um final feliz. Não tem mais.
Seguiu-nos sempre de longe.
Raras vezes, deixou-se ver, gostava de brincar ao jogo do toca e foge, queria ser apanhado, claro que queria, é para isso que cá anda a complicar-nos a vida. Esqueceu-se que os meus joelhos estão destruídos, que não consigo mais correr pelas dezenas de cigarros que inalo, que estou crescida para brincar às escondidas, que estou cansada de jogos. Que quero as coisas mais simples, porque, para complicada, basta-me uma vida poluída por uma frustração enorme, por uma auto-estima miserável, pelo dinheiro que não chega ao final do mês, por recaídas maníaco-depressivas a cada semana que passa no calendário.
Mas meio ano de noites mal dormidas aguçou-me os sentidos, não os adormeceu. Vi além do que se apresentava à frente dos meus olhos e ouvidos. E apanhei-o, escondido atrás de uma edição do Expresso, na esplanada da Graça. Vi-o mascarado de consultor imobiliário em já não sei quantos quartos andares sem elevador, com vistas mais ou menos panorâmicas sobre o Tejo e sobre a cidade antiga. E ouvi-o a cantarolar, afinadíssimo, no meu quarto, o "Cara Valente" da Maria Rita.
Hoje é transparente, mistura-se, anónimo e errante, entre a multidão que todos os dias cumpre pontualmente a sua vidinha, sem contratempos, sem desvios significativos, que acorda às seis e meia da manhã, à hora em que geralmente adormeço, que apanha três transportes públicos para sair do dormitório que é propriedade do banco pelo menos pelos próximos trinta anos, que cumpre tarefas mecânicas no emprego, que, no fim da jornada de oito, dez, doze horas, vai ao supermercado e ao centro comercial comprar coisas que não precisa, justificando com meia dúzia de sacos de plástico, uma vida sem sabor. E dão-lhe encontrões, porque ele já não se vê, não se vê porque já ninguém acredita nele, tropeçam nele, mas não páram, não olham para trás, ele fica bem, mais pisadela, menos cotovelada, eles sabem que ele fica sempre bem.
Ele escondeu-se bem, era um jogo viciado à partida, com muitas cartas na manga, e este Amor era batoteiro. Eu procurei. Eu quis detonar esta bomba. Alguém a desarmadilhou. Não fui eu, não fui eu quem cortou o fio encarnado. Ninguém como eu entrou neste jogo para ganhar; ninguém como eu estava disposto a agarrá-lo com as unhas que se esfarelam ao mínimo toque, garras que nascem em dedos plantados em duas mãos que estão doentes e que doem a cada palavra escrita neste blogue; ninguém como eu estava disposto a abocanhá-lo com dentes perfeitamente alinhados pela ortodôncia; ninguém como eu, escreveria sobre ele, ninguém como eu o saberia escrever tão bem.
Sorria de cada vez que ele cometia um deslize. E quase o apanhei. Fugiu-me das mãos, no fim da aventura, por mim decretada, hoje, resta-me uma mão cheia de nada.
Mas ele seguiu-nos sempre de longe.
Afinal, nunca quis ser apanhado.

terça-feira, março 28, 2006

No Frontera, a mil à hora

Continuemos no Universo do Amor, porque é o assunto mais nobre. E, também, porque há gente que hoje me veio visitar a esta herdade virtual de perder de vista, escarafunchando no Blogger por essa palavra que todos andam à procura e ninguém acha - seguem pistas bizarras, sinais divinos, analisam mapas roídos pelos peixinhos de prata e lêem, de todos os ângulos, pergaminhos amarelecidos e desbotados pelos tempos; aposta-se alto no mais viciante e perigoso dos jogos, não pensando, tão pouco, no devir; a caça ao Amor é uma espécie de versão moderna da caça ao tesouro, só que não há ouro escondido em baús. O grande prémio, se é que ele existe, não se apalpa, não se mede, não se pesa, é uma palavra que lida ao contrário é a capital da Itália, e eu descobri isto quando, ainda pequenita, entrei na estação de Metro Roma, ia com a Magui ao Martim Moniz comprar caril a uma loja indiana - Hot Madras, dizia ela, e eu achava o nome lindo, parecia-me música, e a senhora de saris coloridos, olhos rebordados a preto e bola encarnada entre as sobrancelhas, adorava as minhas tranças grossas e pretas, e os meus olhos amendoados, e oferecia-me pulseiras e bindis, e dava-me a comer uns aperitivos que sabiam todos ao mesmo, e estranhava a minha mãe loira, e perguntava sempre se eu não era indiana -, e eu estava sentada no banco à espera da carruagem, e a Magui estava a fumar um português suave amarelo quando ainda não havia talibans anti-tabagistas (a Tabaqueira que não se atreva a descontinuar o tabaco de filtro branco com risquinha laranja, que a Magui morre-me de desgosto), e eu perdida nos pensamentos e, de repente: "Roma ao contrário é Amor, mamã". E esta palavra está escondida, está escrita a tinta invisível nas mais recentes edições dos dicionários da língua portuguesa da Porto Editora (pelo menos, no meu exemplar, anda desaparecida, o rato roeu).

[há outros leitores que abriram, nos últimos dias de pousio desta terra fértil literária, o portão que chia e que implora por uma gotinha de óleo, e que vasculharam os meus canteiros primaveris (plantei narcisos e jacintos ao pé do poço, porque eles gostam muito de água, como os agriões), filtrando a escrita por um coador de rede metálica muito fina, com outras palavras, menos mágicas, mas igualmente, perturbadoras, como por exemplo, "francisco" - as tuas fãs andam por aí. A anotar, também, porque eu vejo tudo, à lupa, nada me escapa, porque eu ando muito atenta a tudo por causa desta história do Amor, os tarados que o Google traz até a mim, não pela estrela polar em noites de céu limpo, mas sim, através de palavras-chave tão sinistras como: "lembe-me (nao está mal escrito; é assim mesmo, "lembe-me" e foram dois os leitores que conjugaram o verbo "lember") a piça/ caralho", "urinadas e chuvas de prata", "putas em Ponte de Sor", "pôr primeiro a sombra ou o eye liner", "lojas motoserras", "casas sem tecto", e, há poucos minutos, o primeiro visitante do dia, que pisou a terra molhada com galochas de borracha e me espezinhou os trevos de quatro folhas que enfeitam as fronteiras encantadas do quintal com a seguinte busca sherlockiana: "perdi o paladar" - coitado, digo eu, não há nada pior.]

Eu sei que ele estranha, que se entristece. Porque é que não escrevo sobre ele, sobre nós. Porque é sagrado, justifico-me eu aqui, sem absolvição possível, porque não há explicação, nem aqui eu arranjo uma explicação de jeito, suponho que nada que eu escreva se possa assemelhar à realidade, ao sentir, ao que foi amar com toda a pele, com todos os sentidos afinados ao mesmo tempo.
Mas hoje, guiar o Frontera, o nosso carro, foi difícil. E foi difícil, sim, também, porque o veículo pesa 2,5 toneladas e o conceito de direcção assistida é virtual. Tentem conduzir um tractor com uma tendinite a pulsar na mão direita, a das mudanças, e avaliem a dureza da privação. Foi duro por isso, mas 2,10m de altura por sei lá quantos se comprimento posso eu bem, e andar às voltas à procura de um lugar de estacionamento gigante onde caibam dois utilitários também se arranja, ou não tivesse eu pacto com o demónio em vias de beatificação do estacionamento. Já não posso é olhar pelo retrovisor e lembrar dois grand danois babosos e mal cheirosos de olhos meigos na enorme bagageira; ou para o lugar do pendura e ver-me lá, com o cabelo muito mais curto, a lutar contra o sono, numa viagem ao Alentejo onde passámos uma noite que não esqueço com o Barriga; ou ali sentada, ao volante, magnânime, poderosa, gigante, com todos os carros a deixarem-me passar sem ser preciso, sequer, um pisca; já me custa lembrar a primeira vez que guiei o gigante verde escuro metalizado, 2,8 turbo diesel, e fui buscar a Magui e fomos ao supermercado e as barras do tejadilho rasparam no tecto, e eu a tremer por todo o lado na Segunda Circular no regresso a casa, encostada à faixa da direita.
E, durante todo este dia, a mil à hora, dentro do Frontera, comprado em Torres Vedras (ou Novas?) com 80 mil quilómetros e por quatro mil e já não sei quantos contos, a pensar nisto: que o Turbo já não faz o mesmo barulho de antigamente e que tínhamos tudo para ser felizes.

segunda-feira, março 27, 2006

Todas as faces do amor

Esta é uma tarde sem música – os “cascos” que me aquecem as orelhas e elevam o meu ser ficaram esquecidos em casa, em cima do segundo DVD da colecção Planeta Agostini do Noddy, e está fora de questão soltar a minha música pelo ar e quebrar o silêncio de repartição de Finanças que ecoa no primeiro piso, de um edifício verde, de uma rua – penso que da única rua de Lisboa – que tem o sentido do trânsito à inglesa.

[ouve-se um batuque de teclados, o tinir dos telefones, embalados por um dueto impressionante de impressora a laser e fotocopiadora dois-em-um; por vezes, cirurgicamente, vem o grande clímax, com a máquina do café a coroar a 1ª sinfonia burocrática para material de escritório].

Hoje não há música, apesar de a Teresa continuar a habituar-me muito bem logo pela manhã, enviando uma playlist de mp3 ilegalíssimos para a minha caixa do Gmail (talvez por isso, a minha conta não tenha o Talk, porque me porto mal e cometo o crime hediondo de pirataria, em parceria com a perigosíssima líder deste gang, a ex-blogger Thê).
Tenho a certeza que as palavras vão andar coxas; é que eu escrevo sempre ao som de música – e esta sinfonia tocada pela orquestra desarmónica do material de escritório não me traz a inspiração necessária para que as palavras se escrevam sozinhas, como que por artes mágicas (e tantas vezes eu releio e penso: não fui eu quem escreveu isto…).
Adiante, que se faz tarde, e se eu não escrevo as audiências baixam, e se as audiências baixam eu fico triste e os meus shareholders perdem dinheiro (nada como ter uma perspectiva economicista deste blogue).

Foi um amor binário. Zeros e uns. Cheguei a trazer na mala um conversor de alfabeto em linguagem binária – um dia, pensei escrever um post só com estes algarismos, sei que ninguém teria paciência para o descodificar, nem ele, e podia dizer tudo o que ficou por dizer. Mas, como em tudo na minha vida, ficou por fazer, perdeu-se no limbo das boas intenções e das ideias geniais (para vossa informação, caros leitores, há muito post deste infindável blogue com mensagem escondidas; há muito código para ser quebrado, porque é que julgam que me demoro tanto tempo a vomitar palavras?)

Era um amor fotográfico. Era um amor que se alimentava pelos olhos, nunca nos provávamos, nunca nos sentíamos, a lente Carl Zeiss da máquina alemã comprada em Chelas, numa manhã de loucura alucinada à base de Sertralina (apenas dessa forma se explica que eu tenha comprado uma Leica digital e que o tenha feito em Chelas, sem qualquer glamour – é quase como comprar uma Vuitton no Martim Moniz), captou todas as faces possíveis de um amor: a ternura, a alegria, a luxúria (tive que lhe perguntar pelo messenger, agora mesmo: “Amor, como se chama o pecado mortal associado ao sexo, que eu não me consigo lembrar?” e ele disse logo “luxúria”, e isto deve querer dizer que eu ainda sou um pouco pura e ele nem tanto), a melancolia e a tristeza profunda.
Imagino álbuns, álbuns e álbuns, de folhas muito duras, rebordadas a prata, como aquele dos teus mortos, Teresa, que tem folhas de ouro, com a capa de madeira, com incrustações de estanho, flores, amores-perfeitos, oxidados pelo tempo, esverdeados pela humidade do sótão que guarda este amor, nada de plástico neste amor,ele foi um amor semelhante a uma força da natureza, uma tempestade, um vulcão, um tornado, foi um amor à moda antiga, por foto, por carta, e imagino as fotos todas enquadradas por passepartouts pintados à mão com querubins de canudos dourados, e todas as provas fechadas a cadeado, e eu, lá dentro, reproduzida milhares de vezes com todas as minhas caras; com o cabelo liso e encaracolado, com e sem olheiras, com a ruga vincada no meio da testa, quando estava triste; com a covinha da bochecha direita quando sorria e me achava invencível.
Este homem, acho, ainda guarda um enorme espólio de JPEG’s. Um dia, poderá fazer uma exposição. De todas as faces do amor.

domingo, março 26, 2006

Aviso à navegação

Este blogue está em pousio.
O sol, nem vê-lo, mas o mercúrio dos termómetros subiu e os posts, nesta altura do ano e, pelo menos, nesta freguesia, são como a vegetação que salpica de cores primárias e berrantes a escala monocromática de verdes dos canteiros abandonados ou das bermas das auto-estradas.
Aproximam-se grandes lençóis, dos cheirosos, dos que foram lavados com sabão de Marselha e engomados com vapor de água de rosas, daqueles que as gentes do norte e do sul do país vêm ver em romarias de camionetes de Turismo com ar condicionado e toillete incluída. Mas, simplesmente, não tenho tempo para os escrever, o espectáculo tem que continuar e há-de continuar - eu já não imagino a vida sem escrever, e não falo de notícias; eu falo desta purga que eu faço aqui -, dentro de instantes, após um breve interlúdio musical.
E só liguei este computador, num instantinho (e são duas da manhã e eu saí destas paredes do meu quarto - e isto é, também, muito importante: eu só escrevo na sala, logo, premeditadamente, trouxe o Ibook para o quarto, para me obrigar a dormir e não entrar em transe literário laranja no sofá - às dez da manhã e regresso no início de mais uma madrugada em Santa Marta), porque a minha Teresa fez anos, e há muitas coisas boas que este blogue me trouxe, e a Teresa é uma das mais importantes e das mais felizes, dentro da tragico-comédia que é a minha vida.

sábado, março 25, 2006

O amor mais bonito

Eu não sou o centro do mundo dele; sou apenas a amiga, a que é tão preciosa que ele não ousa tocar com um dedo.
Talvez não haja amor mais bonito.


[Excerto de uma conversa no Messenger, às 12:34:38 AM, entre mim (nick de guerra Beretta) e a minha grande amiga Schizo (nome de código Malmequer), que diz, desde o início, que este amor vai vingar, numa qualquer Primavera]

quarta-feira, março 22, 2006

Ninguém pára o amor [nem ninguém sabe onde ele pára]

p(A) = nA/(nA + ñA)

A probabilidade do Amor (sempre com maiúsculas e, de preferência, com capitular) é a razão entre o número de maneiras prováveis de o Amor ocorrer, e o número igualmente provável de todos os outros acontecimentos (quecas, paixonetas, incontinências emocionais, and so on, and so on) ocorrerem.

Hoje, Francisco, apetece-me ser profunda, mas, mais do que isso, quero escrever este post apoiada na muleta mágica da lógica, porque nestes dias em que ando sozinha, onde não consigo sequer levar as pernas até à igreja da rua Garrett, deixo em casa a arejar a eloquência e as palavras bonitas que já cheiravam a mofo e andavam encardidas de tanto uso - nem a pré-lavagem e a lixívia delicada me valem -, e, nesta Primavera, só me resta a lógica e algumas figuras de estilo, porque, acho, já estou autista há muito tempo, e trago as figuras em grande estilo grudadas na pele, tatuadas a uma só cor, nas costas, nas costas que o meu último Amor se comprometeu a pintar para sempre, a deixar a sua marca até ao final dos meus dias (e assim, elas sentem-se menos sós, porque eu já perdi as minhas asas há muito tempo e, em substituição, para esconder as cicatrizes perfeitas, simétricas, e para afagar a parte de mim que mais ninguém toca, deixo o cabelo crescer à vontade até ao dia em que o Santo Expedito atender o meu pedido, apoiado por um Deus do Antigo Testamento, e nesse dia, corto-o à tesourada ou à navalhada - ainda não decidi - na igreja da rua Garrett, em frente ao santo guerreiro das causas urgentes).

Sempre fui uma nódoa matemática. Minto. Houve uma altura, em que passava as férias do Verão a resolver problemas, a giz, num quadro preto que morava no quarto das desarrumações – foi nessa altura em que a voz meteu conversa comigo, porque, na sala, os rapazes jogavam Spectrum e eu tinha menos seis anos e era rapariga, por isso, só me restava resolver problemas de matemática na varanda desarrumada onde às vezes apareciam osgas, sozinha, e a voz veio assim, de mansinho, tímida. Nos primeiros dias, ficou apenas a olhar para mim e eu não sei estar calada, é o meu pior defeito - só ontem, na entrevista que fui fazer com o inominável teu e meu amigo, é que o gato me comeu a língua -, e apresentei-me à voz e perguntei se ela queria resolver problemas de matemática comigo. Até hoje.
Mas, depois, desinteressei-me pelos números, nunca ninguém puxou por mim em nada, passo de interesse psicadélico em interesse psicadélico, e viciei-me, não sei bem como, no jogo das palavras, que me apresentavam sempre mais do que uma solução para o mesmo problema.

Mais tarde, muitos anos mais tarde, no Cais do Sodré, a lógica conquistou-me. Em apenas uma madrugada conquistou-me. Cálculo de Probabilidades. Nasci para o cálculo de probabilidades e passei o ano, passei no exame, resolvendo apenas os exercícios de probabilidades, deixando em branco tudo o resto, é que a lógica faz tanto sentido na minha cabeça como faz a música. E como a coerência não é, nunca foi o meu forte, não conseguia calcular as probablidades infantis, apenas as mais difíceis, os verdadeiros quebra-cabeças. Como as do Amor, por exemplo.

Já escrevi. O Amor é inversamente proporcional à sua probabilidade. Ou seja, tanto maior quanto a sua improbabilidade.

Onde se encontra o Amor?

Definitivamente, na caixa dos comentários. O meu último Amor nasceu ali, depois transferiu-se para o gmail, e cresceu no msn. Acabou por sms, salvo erro. Não me quero lembrar.

Onde eu o procuro?
Eu conto-te: nas portas das casas-de-banho dos botecos do Bairro Alto e dos centros comerciais do Saldanha. Tenho uma bela colecção de ditames, de poetas higiénicos: o primeiro livro que comecei a escrever parte dessa premissa e chama-se WC.
Na urgência do Hospital de Santa Maria, no corredor dos cuidados intensivos. Eu vislumbrei um Amor entre um enfermeiro e uma jornalista de saltos altos de olhar vidrado por Prozac, num banco de madeira à porta dos cuidados intensivos. Metia um cigarro Marlboro e uma conversa sobre o “Por um fio” do Joe Connelly (e isto era quando eu lia, quando eu devorava livros, porque deixei-me estupidificar há uns três anos).
Dentro do Idea, parada numa fila de trânsito. De preferência, à chuva (e o Amor também é improvável de acontecer à chuva, eu ontem apanhei uma carga de água na rua dos Jaracandás à procura Dele), com o barulho dos pára-brisas a ajudar no hipnotismo anestesiante inerente ao encantamento do Amor.
Trago sempre uma folha ao meu lado e uma caneta preparada. E se sentir que Ele está na faixa de rodagem ao meu lado, com ar perdido no horizonte, tiro a tampa da Rotring de tinta permanente, e escrevo na folha, com a mesma lata que num jantar de serviço interpelei um bonito jornalista pedindo-lhe o número de telefone, não sabendo sequer o seu nome, escrevo: “Grandes são os desertos, minh’alma, grandes são os desertos e tudo é deserto. Grande é a vida mas não vale a pena viver” e o meu telemóvel por baixo do Pessoa.
O amor acontece mesmo aqui ao lado, na improbabilidade; tenho a certeza que algures, desconheço as coordenadas GPS, mas tenho a certeza disto: o mais conservador dos homens apaixona-se pela puta do Elefante, o homem que corre uma hora no Holmes Place todas as manhãs deixa-se levar pela mais junkie das arrumadoras de carros, a mulher descobre que ama o seu melhor amigo gay, e, da mesma forma, que o sociólogo Niklas Luhman me ensinou que a comunicação é um acontecimento algo improvável de acontecer, eu transponho aqui, para sustentar o meu ponto de vista, a sua teoria para o Amor. Assenta-lhe como um fato de alfaiate.
Três improbabilidades. Adaptemos o que nunca me esqueci: é improvável que o Amor se realize através da compreensão da diferença entre mensagem e informação; segundo: é improvável que a mensagem atinja o destinatário; terceiro, é improvável que a comunicação do Amor não seja aceite (espero que ele, o senhor Luhman, não me leve a mal pela adaptação selvagem).
É improvável, por exemplo, que acabemos juntos. Por isso é que, não sendo suburbana, sonho com esse evento desde o dia em que me apareceste na caixa dos comentários.

(e eu não devia escrever isto, vai-me cair tudo em cima, já imagino a Eunice ahahahahhahahahah).

É nas costas que se sente a perda. A parte da frente consegue manter as aparências.
Pelo menos, a nossa cara pode encarar-se no espelho. É a nuca que sente a solidão.
Podemos abraçar a barriga e enrolarmo-nos à sua volta. Mas as costas permanecem sozinhas.
É por isso que as sereias e os djinns são retratados com as costas ocas -- jamais alguém lhes encosta uma barriga quente.

Sven Lindqvist, «Exterminem todas as bestas!»

[Enviado pelo leitor 50.000]

terça-feira, março 21, 2006

Desmontando a Beretta

[Versão menos gralhada; só reli uma vez, tenho os olhos tão cansados que só consegui reler uma vez. Mil perdões pela péssima qualidade literária]

Vira-se as costas, simplesmente.
Não se pensa mais nele.
Guarda-se a Beretta na gaveta da mesa de cabeceira, sem não antes desmontar o silenciador também em silêncio sepulcral, para se ser coerente com a função do acessório, e puxando lustro ao cano com um pano de veludo - mas, obrigada, b, a tua sugestão, do tiro na cabeça do sonho, mesericordioso, foi a que mais me agradou, foi a que, poeticamente, mais me agradou.

Hoje, nem a velhinha que pede moedas na esquina da Duque de Ávila com a Luís Bivar me comove. Eu não peço esmola mas estou à chuva, levo o olhar perdido e ninguém me dá a mão. Hoje, não estou altruísta e ando deselegantemente, com um vestido bonito do tempo em que estava grávida, tecido que se colava à barriga, botas de cano alto, bicudas, e meias de rede preta. E estou farta de ouvir piropos na rua porque ninguém diz que o vestido é de grávida, e sobe-me pelas pernas acima por causa da electricidade pouco estática das meias, e ainda oiço mais assobios. E piso as pedras da calçada escorregadia pela chuva-de-molha-tolos que me encaracola o cabelo sem piedade, ando pelas ruas como uma pata choca, não tenho paciência para tirar o buço que me irrita há mais de uma semana, muito menos para andar com a barriga para dentro e o peito para fora, ando à chuva, em zigue zagues, para me habituar que os dias são mesmo assim, nunca são sempre em frente, há mudanças bruscas de direcção a cada esquina, e é assim que vejo que sou conservadora, que detesto mudanças, que queria a vida sempre igual à que sempre conheci.
Vou a pé, e não de táxi, e não sei porquê, estava a chover, e mesmo quando está sol eu vou de táxi, apesar de não ser esquisita como alguns, não exijo ar condicionado. Vou a pé e isto faz-me mal - em cada esquina, há pedaços de mim e eu nem passei muitas vezes por estas bandas, esta não é uma zona em que eu esteja de tranças gigantes em cada canto, em cada rua, em cada lojinha. Mas naquela livraria vim buscar umas reproduções do Modigliani com o Zé quando ele ainda guiava o Austin A40; na galeria do defunto Godinho, vi o meu primeiro Lima de Freitas e soube que o meu pai era um grande pintor; naquele chinês jantei com a Filipa quando andava com três tipos ao mesmo tempo; com a dentista, com a dentista que se lembra de tudo pelo que passei, fui vendo a barriga crescer mês após mês, e os dentes a endireitarem-se, e os dentes a caírem, extracção após extracção, e eu posso ter 60 anos, e ela 70, mas ela vai-se sempe lembrar da rapariga que tinha oito dentes do siso, que quis que os arrancassem quatro de cada vez para sofrer tudo de uma vez só; o gaveto da Luís Bivar, o 40, era dos prédios mais bonitos de Lisboa e agora é amarelo e tem dez andares; o Particular, onde nasceu a Carolina e o prédio em frente ao meu quarto, que só era cofragens e fundações já está erguido, construído e vendido; no City vínhamos comprar jogos para o Spectrum, em cassetes, ou era no Soft Club?; no hospital ortopédico, engessaram-me o braço esquerdo e era lá que a minha avó Zá insistia, em vão, que eu tinha os joelhos tortos, e agora é um mamarraxo espelhado e eu tenho os joelhos desfeitos.
Tudo muda. E um dia vou esquecer-me do vitral do 40 da Luís Bivar. Um dia, vou esquecer. É tão certo que me dói.
Sei que obriguei as pernas a levarem-me à Conde Valbom, porque lá, os jacarandás já perderam a conta das primaveras, e mesmo com raízes que não os deixam sair para lado nenhum, os ramos dão voltas e voltas e amanhã estão um milímetro mais para a direita, ou para a esquerda.
Tudo muda, tudo muda quando menos se espera e eu não sei como a voz da minha cabeça me apanhou, deve ter comprado um Garmin, aparelhinho de GPS que eu tenho que comprar também, nem que seja porque é a única desculpa que arranjo para falar de novo com quem me faz falta; é o único pretexto que me ocorre para carregar no botão dois do elevador e puxar uma cadeira de rodinhas e sentar-me ao seu lado, em frente ao monitor de 21 polegadas.
A voz da minha cabeça, a que me fala comigo desde sempre, desde os tempos em que eu brincava sozinha porque só havia rapazes na rua, que cresceu e engrossou a voz comigo, apanhou-me, entre a Luís Bivar. Seguiu-me pela Pinheiro Chagas, foi ao meu lado quando cortei para Filipe Folque, e quando ziguezagueei para a Latino Coelho disse para me deixar em paz, que não quero falar com ninguém, mas ela sempre foi sábia, sempre quis o melhor para mim e, na Pedro Nunes, a cortar para a Tomás Ribeiro, ordenou que desmontasse a Beretta.
Já na Viriato, disse para me dar por muito contente: "Ao menos, dormiste uma noite de coração cheio", sussurrou. Há muita gente que nunca dormiu de coração cheio, diz-me, calando-se para o resto da tarde e seguindo o passeio até Santa Marta e largando-me em frente a uma porta 13.

De costas para o mundo

de costas

Como este blog já descambou, de qualquer forma, apesar de eu não ser suburbana, aqui fica mais uma tirada pela minha mana Quintela. Continuo à espera do 50.000 na caixa dos comentários. De costas viradas para o mundo. Porque ele às vezes dá-me demais, dá-me mais do que eu consigo aguentar, e eu não sei onde enterrar mais sonhos, mas antes de ir em romaria ao cemitério chorar os meus sonhos, de mantilha preta sobre os cabelos, e gerânios na mão, precisava de saber como é que eles se matam.

segunda-feira, março 20, 2006

(pausa)

Antes que eu dê em doida, alterando o texto da falta que ele me faz com um frenesim que atiça a tendinite e faz doer os dedos (e hoje queimei o indicador da mão esquerda com um cigarro, dois mil graus diz a Magui, dois mil graus é a temperatura a que o tabaco se imola, e eu não sei bem se isto pode ser verdade, sei que tenho duas bolhas enormes), tirando vírgulas, plantando pontos e travessões, contando mais umas migalhas da sua ausência, páro, porque nunca vai ficar como eu quero, porque nem sei bem, já não me lembro a falta que ele me faz. Só sei que estar ali sentada, sem saber o que dizer, só a olhar para uns olhos rasgados e muitos cabelos brancos, sem ter tido qualquer pressentimento, sem ter acordado à espera de um milagre, de um sinal divino vindo da chuva - era suposto este ser apenas mais um dia triste -, com a minha mão a tocar na dele sem querer, com os meus sentidos em alerta, em pose de aluna aplicada, a espreitar o mundo todo pelo Google Earth, num monitor de 21 polegadas, fez-me sentir que não passou meio ano desde que ele partiu, e eu nem vos consigo transmitir a dimensão do meu contentamento, de tal forma, que a prosa anterior, da falta que ele me faz, parece um lamento e não uma exultação (aqui, anteriormente, estava escrito, por lapso, exaltação; a gralha veio-me em sonhos, acusou-se no reino dos lençóis e isto é apenas para vocês verem a dimensão da minha neurose literária).
Façamos uma pausa. Porque eu preciso de dormir sobre este Domingo, dia do Pai, dia em que o Idea faz dois anos. E algo me diz que, a partir desta noite, vou voltar a dormir como antes.

domingo, março 19, 2006

50.000

Aviso: Pede-se ao visitante 50.000 que se acuse. Porque não há amor como o das caixas de comentários. Muito obrigada.

A falta que tu me fazes

[Reeditado]

E tudo o que posso dizer, agora, com o ronco da 2: a lembrar-me noites distantes de tempestades e nevões em Lisboa, é que eu nunca deixei de te ler, e que, a certa altura, esgotei o sal das minhas lágrimas - não podia mais boiar nelas, foi uma aflição: pensei que me afogava -, mas elas continuavam a cair, nunca secaram, e nesse estado de exaustão dessalinizada, deixavam-se, também, beber e eu ainda pensei engarafá-las: é que esta água faria milagres, sabes? Faria sim, porque foram lágrimas que saíram do canto do olho e do fundo de mim, e eu passei vezes sem conta à tua porta com elas contidas nas pálpebras, à espera desse milagre, e tive medo que me aparecesses à janela como uma assombração, mas nada aconteceu.
E toquei no botão que diz dois, no elevador, tantas vezes que já não posso precisar. Toquei no botão automaticamente, e castiguei o dedo que em insistiu naquele número que já não existe na minha métrica, que tocou, dia após dia com uma teimosia que eu louvo, que eu, ainda assim, louvo, e uma coragem destemida, quase alucinada, que eu um dia gostava de ter.
Queria dizer-te que deixei de fumar Lucky Strike porque me lembrava os almoços no Lacinho, de febras grelhadas com batatas fritas, regados com litros de Coca Cola e Nestea. E doía. E o maço transformava-se em fumo, e o fumo invariavelmente, fazia-se água. Sem sal.
Preciso de te dizer que o Ibook não tem um único gadget instalado à espera que tu ponhas ordem na casa. Que o comprei, endividando-me à banca e pagando ao Barclays uma TAEG de dois dígitos (a Magui pagou-me as dívidas ao banco, entretanto), com a esperança de que tu voltasses. Só pelo computador da maçã. Porque sabes que eu não consigo dar conta do recado sozinha, que não consigo ser mãe solteira deste pequeno, que preciso de um padrinho.
Queria dizer-te isto: que podem cair todos os nevões na cidade onde eu vim nascer; os céus podem protestar sob a luz dos raios e o rugir dos relâmpagos; as luzes da ponte sobre oTejo podem nunca mais se acender em sinal de luto; as santas até nos podem salvar da combustão espontânea e do Destino em mais madrugadas; os juízes podem recusar-se em dar-me razão nesta vida e na outra; o chão pode até faltar-me por debaixo da sola bonita de cunha dos sapatos Adolfo Dominguez. Mas nada se compara à falta que tu me fazes.

[E se tu continuas com o rss feed ligado para o endereço http://empantanas.blogspot.com, sabes que eu já alterei mil vezes este texto; sabes, também, que não é a primeira vez que eu falho aqui, no [t]ralha, em fazer-te uma ode que conte ao mundo a falta que tu me fazes.]

Meia desfeita

meia

sábado, março 18, 2006

Je suis lascive, devant toutes nos errances

[Um obrigadinho à vizinha Thê, pela banda sonora deste Sábado de trabalho]

Maman est dépressivePapa manque de confianceEt moi je suis lasciveDevant toutes nos errancesEt si on essayait un peuDe voir notre petit monde d'en hautAu liue de laisser choir nos idéauxMamie semble pensiveElle voit crever papiElle se dit pourvu que je vivePour penser un peu à ma vieTonton est dans la mouiseLes gendarmes ont trouvé son herbe bleueIls la disent nociveMais non ! Puisqu'elle lui fait briller les yeuxEt si on essayait un peu...Mon grand frère est un peu timbréIl joue avec Jojo mon p'tit fiancéIls jouent à s'alongerNus , tout nus au fond du canapéLa tatie est en criseElle a zigouillé le chat de ZoéLe Lexomil s'épuiseEt elle boit son wisky comme du p'tit laitEt si on essayait un peu ...Et si on essayait d'userD'un peu de minutiePour orchester notre thérapie !

Olivia Ruiz, Thérapie de Groupe

sexta-feira, março 17, 2006

Todos os males do mundo


Sarah beijou Lancelot, beijou-o na face manchada de nascença, e deu ordem de despejo a todos os males do mundo. Desejou que passasse tudo para ela.
[É linda esta imagem, não me sai da cabeça]

quinta-feira, março 16, 2006

Os cinco sentidos

[Tenho que desligar a televisão. O filme é bom, mas eu raramente a ligo e penso mesmo em suprimi-la da sala, porque, de qualquer forma, está sempre no Panda, por isso, pode ir para a assoalhada à minha direita, onde o anjo loiro dorme de rabo empinado, virado para a lua, a bola que hoje já está menos cheia e que, em conjugação com o céu nublado, trouxe uma luz anilada à Duque de Loulé e à rua estreitinha que mora dez metros abaixo - luz de chuva, diz a Magui. É que eu já não sei como é que se faz, eu também não sei porque é que a liguei, mas não consigo deixar a emissão a roncar em surdina, como ruído de fundo, só como companhia, e continuar com tudo o resto, com os pensamentos desordenados na minha cabeça, à espera que oito dedos - dois, da mão esquerda, seguram o cigarro Camel (continuo em fase de alta rotatividade de marcas de tabaco) - os alinhem, perfeitos, neste blogue. Pronto, já está. Silêncio e a passarada não canta hoje, é absoluto, ouvem-se os carros lá fora e faz sentido: é uma noite concorrida nas minhas bandas, entre o quarteirão das discotecas africanas e o outro, dos bares de putas, e ainda o outro, dos travestis que se vendem na rua. E agora ouve-se a chuva, a Magui tem sempre razão, era mesmo luz de chuva, e eu dou graças a Deus pela chuva, tomara que ela caia três dias sem parar e que me lave o ar, para que, amanhã, e depois, eu consiga respirar e trazer um olhar menos drogado na cara]

Tenham a bondade de me auxiliar - e é feio, é muito feio, plagiar o ceguinho do metropolitano.
Mas, se houver algum médico a passear neste quintal, onde as árvores de folha caduca estão a começar a brotar folhinhas verde alface, e as amendoeiras, nespereiras e ameixoeiras estão em flor, num espectáculo que motiva romarias de norte a sul da blogosfera e renites alérgicas virtuais como nunca antes vistas, que me explique, por favor, porque é que me acontece isto tantas vezes.

A Magui fez arroz de pato fingido.
Abordei o arroz de pato fingido na tasca da Gama Barros, disse, mamã, já não fazes o arroz de pato fingido há tanto tempo, aquele que leva cenouras e nabo e bacon por cima, e, chegada a casa, com os olhos muito inchados e raiados de sangue, o nariz muito entupido, uma tosse que me faz doer o peito e as costas, lá me esperava o dito cujo, dentro do forno.
A Magui é uma mãe alimentadora. Há sempre comida para um batalhão em cima do fogão, dentro do forno e há reservas que davam para meses e meses a fio no frigorífico e na arca congeladora.

A Magui repara nestas coisas. Ela finge que não, mas repara. Eu não gosto de chorar ao pé dela. Porque eu sei que ela defende que as mulheres não choram. Mas ela sabe os sintomas da minha tristeza, mesmo que eu não traga a bexiga ao lado dos olhos e, quando eu estou mesmo triste, deixo de comer. E ela reparou, esta manhã, que eu emagreci, as calças, que estavam justas no início da semana, ficaram, subitamente, largas. Constatei-o ainda agora, em cima da balança laranja, que parece que foi feita por encomenda para a minha casa de banho: três quilos desde segunda-feira.
Por isso, o arroz de pato fingido à minha espera no forno. Porque pensou que, assim, eu comeria, que, assim, eu sairia voluntariamente, com os meus próprios pés e estômago, da idiota greve de fome.
E eu esforcei-me. Trouxe-o numa caixa para Santa Marta, aqueci-o um minuto e meio no micro-ondas. E arranjei, com esmero, uma caixinha de morangos comprados no Lidl de Xabregas, e quando estava com a faca na mão, debaixo de um fio de água frio que me anestesiou as mãos e as coloriu de roxo, lembrei-me dos cartuchos de papel manteiga, e dos vendedores que traziam, ora cerejas, ora morangos até à praça ao lado do cinema King.

-- Quais são os cinco sentidos, mamã? Falta-me um... Visão, Olfacto, Audição, Tacto e...
-- Que parvoíce... Também não me lembro...
-- O paladar é um sentido, não é, mami?
-- Não, acho que não... Hmmm...
-- Perdi o paladar, mamã. A bica não me sabe a nada. E hoje não cheiro, também, o meu perfume, o Rush, e sabes bem que ele tresanda a quilómetros. Estou com dois sentidos a menos e isto está sempre a acontecer-me. Qualquer dia, perco, também, o juízo. Não tarda, perco o juízo, olha, da próxima vez que me der a alergia aos fenos. Decidi.

E a Magui acha sempre que eu estou a hiperbolizar. Mas perdi-os. A renite instalou-se de pernas abertas no meu nariz, nos meus olhos, nos meus ouvidos e pulmões e o paladar foi-se, humilhado, escorraçado, e o olfacto nem sinto muito a sua falta, mas o paladar, angustia-me esta vida sem sabores agridoces na minha boca.
Os cigarros não sabem a nada, o arroz de pato também não, e os morangos, esforcei-me para imaginar o seu sabor, mas só senti a sua textura, e nunca tinha reparado na textura deste fruto adorado dentro da minha boca -- o sabor é um sentido tão forte, tão intenso que espanta todas as considerações que possam surgir; os sentidos, os outros quatro, ficam deleitados, é como numa relação doentia, em que um dos elementos do casal se apaga.
A vida sem sabor é como a vida sem amor. É triste.
Mas emagrece.

Treva.

Vanessa.

Eu não tenho vergonha de chorar em frente aos meus colegas, aqui, à secretária, sempre que me obrigo a reler o relato da morte da Vanessa. Ainda que com um dia de atraso, obrigo-me a reler as causas e os pormenores desta morte sem perdão. Ontem, não tive coragem, passei as páginas, aliás, mandei o jornal para o lixo. Não queria vomitar outra vez. Mas hoje tive que ler. Porque o mundo é escuro. E eu não me posso esquecer, jamais, que o mundo é escuro.

quarta-feira, março 15, 2006

A luz. A treva.

O meu lado negro perde sempre a guerra com o meu lado luminoso. Sempre.

grão

A passarada

Já passou. A sério que já passou. Dá forte. Passa depressa.
Exagerada, pedi três dias para voltar a ser a mesma pessoa doce de sempre. Doce nas palavras. Só há doçura nas palavras.
Já passou. Nem foram precisos três dias que solicitei no requerimento burocrático do guichet da neurose, 72 horas era demais, ficámos pelas duas folhas da agenda que não existe (a minha agenda é o meu blogue; se quero saber o que fiz neste ou naquele dia, consulto os arquivos), em 48 horas vomitei duas vezes, vomitei o meu ódio na sanita, deixei de comer para me limpar, hoje, de madrugada, tossi sangue, restos da hemorragia que já estanquei, porque já passou.
Eu cerro os maxilares, e ranjo os dentes, e levanto a sobrancelha direita, e empino o nariz (o nariz que ele me diz que é de refilona e que foi a primeira coisa que reparou e eu sorrio e pergunto: como não foram as olheiras? Como é possível?), e só solto as lágrimas na Igreja da rua Garrett, e olho para os pés, e vou de cabeça baixa, resignada, quase a desistir, e, para desanuviar, para limpar o cérebro da escuridão que me polui, brinco a um jogo dos tempos de criança, bato com a biqueira do sapato no canto direito da pedra da calçada, e quase desisto de lutar, e quase cedo à dor, e oiço um piropo numa rua estreita e solarenga, e depois ergo a cabeça das pedras da calçada, porque o passeio está esburacado e atrapalha-me a concentração do estado de alma vazio, e insisto, luto por um mundo em que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens. Onde a lei é aplicada e onde as tradições não têm a mesma força de um diploma.
Eu sei que os sonhos não se dão bem com a realidade. Eu sonho com esse mundo para a minha filha. Que um dia será mulher.
Mas já passou.
Um juiz desembargador do Tribunal da Relação diz-me que a sociedade não está preparada, que o redactor do código civil foi “romântico” ao escrever o artigo 1875º. Não diz, porque era só o que mais faltava, que a lei existe mas não é para aplicar, que está só lá para decorar. Não foi tão longe. Mas dá a entender que é assim, e que o caminho é encolher os ombros e suplica para eu desistir.
E eu não aceito isto. E o mesmo juiz, cuja cara e os olhos azuis eu nunca esquecerei na vida, humilha-me, sugere-me um banco de esperma anónimo na vizinha Espanha, apenas porque eu luto por direitos iguais entre o cromossoma y e o x. E ele sabe que eu vou até às últimas consequências, ele sabe que isto vai até ao Constitucional, chama-me assertiva, eu preferia que me chamasse teimosa, e eu devia-lhe ter dito: senhor juiz, eu tenho dinheiro para prolongar esta guerra durante muitos anos, eu luto por esta migalha legal apenas porque tenho dinheiro e porque tenho esse direito, mas passava fome, se fosse preciso, para continuar esta guerra contra essa sociedade que o senhor me diz não estar preparada para mim.

Vamos preparar o recurso. Vamos chatear novamente a Comissão para a Igualdade e para os Direitos da Mulher, cujo parecer, que me é favorável, foi ignorado pelo colectivo de juízes, homens. Vamos à luta sem o sentido esquerdalho da palavra (e é tão interessante, uma conservadora lutar contra uma tradição), porque a mudança dói sempre, porque ainda há muito sangue para cuspir, há muita tripa para vomitar, quem sabe, se não há, entretanto, orquídeas a florir e arco-íris desenhados nas poças de óleo de automóvel largadas no alcatrão, é que eu não desisto de acreditar nessa sociedade que o senhor me quer convencer que é romântica.

Na minha sala ouve-se a passarada durante a noite toda.
Os melros não dormem de noite, e eu nunca tinha reparado que eles eram arraçados de morcego, de facto, vestem-se de preto, mas hoje estou alerta, estou de olhos bem abertos, em sentinela, de ouvidos tísicos de demente, e hoje apercebo-me que os melros acompanham-me na insónia.
Mas eu já estou bem. Eu só não durmo porque a solidão funciona como cafeína. Se alguém estivesse aqui, em silêncio, só a fazer-me companhia, a velar pelo meu sono, eu estaria a dormir. Profundamente. É tão simples quanto isso. Eu sei da cura, um médico receitou-ma num sonho bom, de cinco minutos de duração, entre as 09h10 e as 09h15 da manhã.

Andarão à cata da minhoca? Ou a Primavera chegou e estarão a fazer aquilo que as abelhinhas fazem nas colmeias? [Eu só sei que o raio da prima veio visitar-me, apanhou a camioneta e saiu ali perto da embaixada dos EUA, apareceu-me à porta de casa com um presente, eu desembrulhei e era a rinite alérgica. Que simpática, prima Vera, e a Lusa diz-me que, até Domingo, a concentração de pólenes no ar vai piorar, e, provavelmente, morro afogada em Atarax até lá, com as primas Vera e Sónia (miúda na idade do armário que julga que é “in” e que me rouba o sono) sentadas no sofá, quietinhas, sem me prepararem, sequer, um chazinho.]

Esta noite, não carrego no play, não se vai ouvir Elis Regina, no Fino da Bossa volume I, CD que se casou com a Sony velhinha esquizofrénica (que salta faixas, aleatoriamente, impondo a sua autodeterminação), há semanas e semanas. Só vou escutar a passarada.
Vou fixar os olhos no tecto imperfeito, sem esquadria, vou encandear os olhos nos seis globos de 75 wolts do candeeiro, vou isolar todos os ruídos: a gota que cai da torneira do lava-loiças, o relógio despertador do quarto da minha filha loira que faz faz “tic-tic” (e não “tic tac”, porque é made in China, e custou um euro na loja do senhor Lee, e toda a gente sabe que os relógios no país dos olhos em bico não fazem tic tac, falam uma língua diferente), o vento sobre as folhas e sobre os frutos do limoeiro carregado, as patas de uma gata tricolor (todos os gatos com três cores são gatas) de coleira encarnada e guizinho ao pesocoço, no telhado de zinco da velhota que dorme no quintal.
Isolo tudo, os sons, os cheiros, as imagens, espanto o negro, chamo a luz, e só vou ouvir a passarada.

Threesome [com o Esquizo e com o Alzheimer]

Malmequer says: (2:00:56 AM)
tu come o gajo

Malmequer says: (2:01:00 AM)
e q seja bom

Malmequer says: (2:01:06 AM)
lol

Shakespeare in love says: (2:01:07 AM)
eu??????????

Shakespeare in love says: (2:01:12 AM)
n o conheço....

Malmequer says: (2:01:15 AM)
siiiiiiiiiiiim

Malmequer says: (2:01:16 AM)
nao

Malmequer says: (2:01:17 AM)
o xxxxxx

Shakespeare in love says: (2:01:21 AM)
lol

Shakespeare in love says: (2:01:25 AM)
ahhhhhhh

Malmequer says: (2:01:27 AM)
Alzeimeeeeeeeeeeeeeeeeeer

Shakespeare in love says: (2:01:31 AM)
lolololololololol

Shakespeare in love says: (2:01:34 AM)
ahahahahahahhahahaha

Malmequer says: (2:01:35 AM)
sai da casa da Dia!

Shakespeare in love says: (2:01:39 AM)
nããããããããã

Shakespeare in love says: (2:01:41 AM)
lol

Shakespeare in love says: (2:01:45 AM)
está bem instalado

Shakespeare in love says: (2:01:48 AM)
lololololololol

Shakespeare in love says: (2:01:54 AM)
deitado no sofá comigo

Malmequer says: (2:01:57 AM)
lol

Shakespeare in love says: (2:02:07 AM)
enroscadinhoooooo

Shakespeare in love says: (2:02:15 AM)
esquizo agora

Shakespeare in love says: (2:02:21 AM)
sai da casa da Dia, esquizooooo

Shakespeare in love says: (2:02:23 AM)
lol

Shakespeare in love says: (2:02:30 AM)
esse está na poltrona

Malmequer says: (2:02:33 AM)
lol

Shakespeare in love says: (2:02:36 AM)
a ver

Shakespeare in love says: (2:02:42 AM)
sacana

Malmequer says: (2:02:45 AM)
Dia, hoje expulsam-me do prédio

Malmequer says: (2:02:49 AM)
não paro de dar gargalhadas

Shakespeare in love says: (2:02:52 AM)
lol

Malmequer says: (2:02:57 AM)
tens q por esta conversa no blog

Shakespeare in love says: (2:03:09 AM)
simmmmmmm

Shakespeare in love says: (2:03:14 AM)
boa ideia


Shakespeare in love says: (2:03:51 AM)
mas hj n posso por o esquizo e o al (apelido zheimer) na rua, nas escadas, pq há baratas vermelhas, radioactivas

Malmequer says: (2:04:00 AM)
lol

[As minhas insónias são mais toleráveis com diálogos destes]

terça-feira, março 14, 2006

My only love sprung from my only hate

O Romeo, Romeo! wherefore art thou Romeo? Deny thy father and refuse thy name! Or, if thou wilt not, be but sworn my love, And I'll no longer be a Capulet.

I know not how to tell thee who I am. My name, dear saint, is hateful to myself, because it's an enemy to thee

[Hoje à noite, quando o sono faltar novamente à chamada, arriscando-se a chumbar o ano por faltas a meio do segundo período, enfio o DVD do Romeo + Juliet, realizado e produzido pelo visionário Baz Luhrmann, e sonho com vingança e perdão, amor e ódio, violência e paixão, desespero e fé.
Entretanto, até lá, a banda sonora da tarde é Prokofiev, Montéquios e Capuletos, como não podia deixar de ser - é que enquanto isto não sarar (peço-vos três dias de compreensão), não vou falar de outra coisa, e isto é um aviso à navegação e vai dar tudo ao mesmo, mais ou menos codificado, mais ou menos subtil, ou escancarado, escrito com todas as letras, com todos os adjectivos e advérbios: vai ser sempre sobre de duas famílias que se odeiam, que se vão odiar até à morte e só tenho pena de não encontrar uma versão orquestral da peça para estoirar os vossos ouvidos com o ódio e violência que sai daquela partitura e daquelas duas famílias…

Da sabedoria do senhor Shakespeare e da mais bela tragédia algum dia escrita deixo-vos: “There's no trust, No faith, no honesty in men (Romeo and Juliet, 3. 2), “These sorrows make me old” (idem) e “Tempt not a desperate man” (Romeo and Juliet, 5. 3).]

Santo Expedito [escrito na igreja da rua Garrett]

[Este blogue está a cumprir serviços mínimos. O que não quer dizer que não venha aí um lençol de linho, daqueles de linho rústico, em que a trama é imperfeita, idênticos aos que a minha bisavó Carolina dos Santos tecia na roca, entre 14 gravidezes, das quais nasceram três pares de gémeos, meninos, fio após fio, com os dedos em sangue, entre sete mortes de filhos por doenças várias, mas, sobretudo pela fome -- e tu sabes isto sobre a tua família, sabes que a tua filha tem o nome que tem para honrar esta mulher?]

Santo Expedito, ouve esta prece, eu sei que proteges as causas urgentes, eu sei que tu és um santo guerreiro, e eu não sei que paranóia é esta a minha pelos santos, eu não sou católica, mas esta igreja é a igreja da minha aflição, entrei nela pela primeira vez no primeiro sábado odiado, sentei-me na nona fila, no mesmo lugar onde me estou agora, e eu não decorei, mas sei que ao meu lado esquerdo estava o Santo António, e lá ao fundo, à direita, está a Santa mais bonita, a Teresinha, ao lado do arcanjo Miguel, e nessa tarde, o órgão tocava, tocava músicas que faziam os anjos dançar na abóboda da Igreja que estava enegrecida, os frescos estavam escondidos por infiltrações e hoje eu sento-me, santo Expedito, e o verde e o encarnado do tecto esmagam-me, parece que os frescos foram pintados ontem só para mim, e esta prece é a sério, esta prece é feita de joelhos bem assentes no veludo carmim, de mãos unidas uma contra a outra até doer e a pele ficar branca e dormente, e as pontas dos dedos roxas, sem circulação, e pouco importa que o médico me tenha dito na sexta-feira que tenho um joelho desfeito e o outro para lá a caminhar a passos largos, pouco importa que não devesse subir escadas, que não possa praticar jamais o kama sutra, e eu hoje não vou usar pontos, vou abusar das vírgulas, Expedito, eu estou aflita, eu sei que as seis pessoas que estão aqui comigo, à uma da tarde, a bichanar preces na fila de trás, estão tão ou mais deseperadas que eu, é ninguém deixa de almoçar para rezar se não estiver preso por um cordel de merceeiro, são os tempos que mudam, a fé não se vê, não se compra, não há tempo para ela, e antes de vir aqui eu comprei um par de sapatos para me sentir melhor e não sinto, e três dos meus companheiros de aflição estão de joelhos, tal como eu, mas eles não choram, muito menos escrevem, e o desespero não tem pontos finais, é um crescente, no máximo tem reticências e eu vou usá-las aqui para respirar...
Santo Expedito, perdoa, mas eu não sou abnegada, eu não sou despojada, eu não nasci para o caminho da santidade, não sou pura, e eu não sei porque é que tu, a Teresa, a Marta e o Miguel me protegem. Eu devia desistir, se eu fosse mesmo boa devia desistir, e eu pesava 27 quilos a mais quando olhei para o espelho e disse que ia desistir, que ia ser sublime, magânime, eu pensei nisto e falhei.
Procurei-te um dia destes para iluminares o meu amigo, e eu nem sei se tu estás aqui nesta igreja, acho que não, não me lembro de te ver por aqui, só que esta prece é a mais sentida, eu nunca me ajoelhei para rezar: entrei e vim directamente para a nona fila, e chorei e sei que quem está na fila de trás também rezou por mim.
Eu sei que és o santo dos aflitos, das causas urgentes, peço-te que olhes por mim e pela metade de mim, que me ajudes nas horas difíceis, nas horas em que eu entro nesta igreja sem saber para onde mais posso ir.

[O Santo Expedito estava nas minhas costas, envergando uma enorme cruz e vestindo a sua farda de incansável guerreiro. A acender três velas estava um rapaz, da minha idade, que eu desejei que fosse o meu amigo, que eu não conheço, e que me garantiu que tudo se iria resolver. Logo a seguir, a minha querida amiga esquizofrénica levou-me a almoçar com vista para todo o Tejo. E fez-me a companhia que eu precisava, que eu preciso em noites como estas, em que este computador e quem ele me traz, pela fresta de uma janela mágica, são as paredes mestras do meu ser. Aos três que estão aqui a servir de psicanalistas virtuais - não os vou nomear, eles sabem quem são e são os mesmos há muito tempo, pelo menos parece muito tempo - o meu obrigada]

segunda-feira, março 13, 2006

Montéquios e Capuletos

Em Verona, duas almas descobriam o amor, o primeiro e único, o verdadeiro, e sofriam. Por um nome.
Julieta, com a doçura que só as mulheres conseguem ter, dizia: "What's in a name? That which we call a rose by any other word would smell as sweet."
E cada vez faz mais sentido isto que a jovem Capuleto disse, e cada vez me convenço que só entrei nesta luta porque não sei fazer outra coisa, e somo derrotas, e conto as baixas e já não sei quantos estrupiados deixei para trás nos campos de batalha.
A triste conclusão é esta: eu não sei viver sem uma demanda. Por mais estúpida que seja.
Amanhã, daqui a uns meses, ou mesmo passados 16 anos, eu ganho esta guerra.

sábado, março 11, 2006

Problema de expressão

Temos que f.... mais amiúde.

quinta-feira, março 09, 2006

Dez metros abaixo da Duque de Loulé

A vida acorda madrasta dez metros abaixo da Duque de Loulé.

Às seis da manhã, dois aparelhos Nokia, da rede móvel detida pelo engenheiro que me paga o ordenado que desaparece, por artes mágicas, ao dia oito de cada mês, com a prestação da casa, encurtavam as distâncias geográficas e bichanavam-se babuseiras que faziam corar as orelhas direitas do emissor e receptor da chamada telefónica.
E, nisto, porque trezentos quilómetros de distância dão uma leveza de ser equivalente a uma pena de anjo e uma coragem de herói mitológico que derruba monstros de sete cabeças, apalpava-se, também, de mansinho, o terreno macio e fofo de um amor, com revelações tão perturbadoras como as de olhos revirados de prazer e sorrisos sacanas à luz de velas encarnadas - coisas que ela não imaginava que ele reparasse, porque são coisas pequenas, e ela não sabia que ele era dessa laia, só sabia que estas coisinhas a aqueciam mais que o duplo edredon king size que a sua ex-tia Milucha lhe tinha comprado para o enxoval há não sei quantos anos atrás.

E, às seis da manhã, dois amantes tentavam convencer um júri invisível que não estavam perto, sequer, de estar apaixonados um pelo outro - e batiam na madeira três vezes, e questionavam-se mutuamente: não estás, pois não? Claro que não, tás parvo?... Não estou a gostar da conversa, car#$%....
Cada um deitado na sua cama, cada um a falar como se estivesse a contar um segredo terrível, apenas para não acordar quem dormia no quarto do lado, e os dois cérebros praticamente fluorescente de tanta radiação GSM que pairava no ar - telefonemas às duas, às três, às quatro e às seis da manhã -, e, enquanto estavam nisto, a luz da assoalhada única das águas furtadas do prédio vizinho da frente - essa sim, verdadeiramente fluorescente, a luz que me acordou por milagre no dia do fogo que dos encalhados de Santa Marta - , habitada por uma meia dúzia de imigrantes de leste da Europa que, suponho, se amontoam todas as noites, em beliches e colchões de palha, nos cantos esconsos daquele anexo ilegal, e (sobre)vivem no limiar do trabalho escravo, enquanto os amantes se deliciavam com o timbre das suas vozes, essa luz estava há muito ligada.

Às vezes via-a na rua, a mulher magra e seca, que estende uns panitos e cuecas no estendal improvisado com uma corda de sisal à janela, a única janela, minúscula, daquele depósito de seres humanos. Anda sempre com um lenço na cabeça e parece acabadinha de chegar da máquina do tempo, do século XIX, plena revolução industrial, vem até com a cara ligeiramente farruscada de carvão.
Um dia bateu-lhe à porta. Perguntou se podia alugar-lhe um quarto. Era para o filho. Mas antes apresentou-se, ofereceu os seus préstimos domésticos, e ela já sabia quem era esta mulher transparente: quando regava as flores da sacado do seu quarto, via-a enquadrada pela moldura da janela, pelos panos e pelas cuecas estendidos na corda.
Disse-lhe para entrar, e agora já não se recordava do nome da senhora do lenço na cabeça, da mesma forma que, também já não sabia, outra vez, o nome do ortopedista que amanhã lhe ia escarafunchar o joelho direito, o maldito osso que lhe retirava alguma alegria de viver com o cocktail de dores com que a presenteava de manhã e à noite.
Envergonhou-se. A mulher disse que nunca tinha visto uma casa tão bonita. E a Martinha (a casa, para quem acaba de chegar, a minha casa chama-se Martinha; que maçada, ter que fazer estes parêntesis, ter a papinha pronta, com o tempero e temperatura ideais; é que hoje e ontem, andou muita malta a pesquisar no Google e no Sapo pelo blog da Diana Ralha, por isso, meus caros, tenham medo, tenham muito medo, que eu sei tudo e, pior, sei onde trabalham, e já que estou a falar das minhas actividades de detective, ando há imenso tempo para saudar o visitante belga e o senhor(a) que trabalha na Energis UK, e, claro, os madrugadores norte-americanos - Ford Motors, eu sei que andas por aí) ficou inchada, velha vaidosa como nunca se viu, a caminho dos duzentos anos já devia ter juízo e ser menos flausina e não devia fumar, também, que não fica bem a uma senhora de tanta idade fumar, mesmo que seja com boquilha, como ela faz, mas ela, ficou envergonhada, porque a Marta é, realmente, bonita, porque a decoração foi pensada ao último detalhe, e a parede laranja está na moda, e a cozinha parece um bordel parisiense, mas ela não era mais feliz por ter uma casa que, quando está arrumada, fora das mãozinhas pequenas de um anjo loiro, podia ser parte integrante da última edição de uma revista de decoração.

Ela não tinha um quarto para o filho da mulher do lenço. Tinha um quarto interior, que poderia ter alugado por 150 euros, seis metros quadrados sem janela, mas era o seu closet, lá moravam os fantasmas, juntamente com as dezenas de sapatos e vestidos de decotes vertiginosos.

Um andar abaixo, a vizinha também anda de lenço na cabeça. Verde, com cornucópias. É recente e não é moda, confirmando os seus piores receios. Hoje, alimentava o seu cancro de pulmão à varanda do jornal e viu-a passar pela Viriato. Com chapéu azul na cabeça. Chegou a casa há pouco, enfiou a loira febril dentro da cama e olhou lá para fora. Estava à procura da lua, que esta noite está a meio gás, mas não encontrou a bola cortada a meio, mas sim, a vizinha sem lenço e sem cabelo.
A vizinha deixou de comer, todas as manhãs, maçãs golden na companhia do chilreante e amarelinho canário (e isto até rima, maçãs e manhãs, e quem rima sem querer é amado sem saber). Ela notara. E temia a substituição das maçãs pelo lenço verde com cornucópias. Rezaria pela vizinha. A partir de hoje.

A vida acorda madrasta dez metros abaixo da Duque de Loulé.

A Dona Beatriz descobriu que tem uma neta de um ano do seu filho de vinte anos, que trabalha na TVI, nos Morangos com Açúcar. Passou dois anos na "terra" (sempre gostei dessa expressão, a "terra") a cuidar dos pais, enterrou-os e enterrou, também, parte dela por lá, e ninguém lhe contou nada. "Estiveram para a dar para adopção e ninguém me disse nada, soube assim, do nada, uma neta, uma neta, como é que ninguém me disse nada?", e diz isto e abraça a minha filha e dá-lhe um Kinder (e a Carolina agradece com um "Tiz" e um beijinho).
Fala-me de um casamento onde não há diálogo, onde nunca houve, de um homem mudo e vinte anos mais velho, diz-me que o telefone toca todos os dias e são sempre mais dívidas, conta-me que os fornecedores chegam à tasca e apresentam sempre mais créditos, não aguenta e chora, fala do demónio que lhe entrou na casa, que levou o carro, que pôs o negócio à beira da falência, diz-me que o tratou como um filho, que tem pena dele, que lhe perdoa e reza por ele, e conta-me histórias da Bíblia, e cita-me frases de livros que a tocaram, e é tão boa a dona Beatriz, é uma pessoa que tem bondade escrito em cada ruga da cara, em cada fio de cabelo branco pintado de cobre, e a vida anda madrasta a dez metros abaixo da Duque de Loulé.

E às vezes eu quero chorar. Quando a Carolina vem a dormir e eu tenho que trepar os degraus da via sacra de Santa Marta com um peso adormecido de 15 quilos ao colo. Levo-a apoiada no vale profundo que se desenha entre a minha cintura fina e a minha anca. Foi feito à medida de anjos, aquele vale.
E nem os conto, sei que são mais de sessenta degraus, mas não os conto. Chego ao segundo andar e penso que já só faltam outros dois. No terceiro, o coração já está a querer sair pela goela e hiperventilo muito baixinho para não acordar o bébé mais bonito que algum dia se viu a dez metros abaixo da Duque de Loulé, mas eu só penso que só faltam dezasseis para chegar.
Acordo, todos os dias, ao nível da Duque de Loulé. Aliás, acordo ligeiramente elevada face àquela avenida de Lisboa onde só podem circular transportes públicos.

E a vida não acorda madrasta do meu lado da rua.

quarta-feira, março 08, 2006

Foi então

[Preparem-se; sentem-se o mais confortavelmente possível na cadeira muito pouco ergonómica que vos arranjou a entidade patronal, e eu sugiro, ainda, um chá preto para acompanhar a leitura de um lençol]

Foi, então, que ela soube.
Falhava a interpretação de todos os sinais. Era recorrente este lapso, apenas gostava de sinais sobrenaturais, dos que mais ninguém vê: dos anjos que acordam de madrugada e evitam fogueiras no Marquês de Pombal, dos coelhos que saem das cartolas das suas caixas de comentários, do visitante 33.333, dos telefonemas de um perigoso inominável após actividades potencialmente sifilíticas.
Estes, sim, ela via, e interpretava ao sabor do vento, da ventania em forma de remoinho que varria tudo de mau para trás do coração. Mas, como sempre foi directa, sem rodeios, não tinha grande pachorra para insinuações, para o dá e tira, para chove que não molha, e quando assim era, levantava a sobrancelha direita e fazia uma covinha, na bochecha desse mesmo lado – o seu melhor lado, como não poderia deixar de ser, ou não fosse ela uma perigosa reaccionária –, e ignorava.

Por isso, na grande maioria das vezes, era sempre a última a saber, mesmo quando tudo se apresentava à sua frente – de uma forma desordenada, é certo, mas estava tudo lá, a monte, e até um ceguinho poderia ver, e ela sempre acreditou na sabedoria popular, dormia com o dicionário de provérbios na mala antiga que usava como mesa de cabeceira e algures na página 735 dizia que o pior cego é aquele que não quer ver, e, mais atrás, na 512, vinha esta verdade: em terra de cegos quem tem um olho é rei.
Mas, apesar das dioptrias, duas e meia num olho (era ligeiramente estrábica por isto, porque tinha muitas dioptrias num olho e visão de ave de rapina no outro), via muito bem, nunca trazia os óculos na ponta do nariz, sobretudo porque a aleijavam atrás da orelha direita e, também, não há que negar, porque ele dissera que ela parecia uma professora da primária com os seus Calvin Klein de massa preta, de estilo anos 50.
Estava cega por opção e, por isso, não se podia queixar. Não queria ver e sabia que isto era uma sina. Era bom e era mau: evitava chatices, taquicardias, sobretudo gritos, mas havia um preço alto a pagar. Tinha que se conformar, por exemplo, com o facto de ter conhecimento de notícias relacionadas com a sua carreira na máquina de café, vindas da boca de alguma alma caridosa com pena da figura triste de ceguinha que fazia, quando metade da redacção já estava careca de saber o que os ventos da aleatoriedade lhe trariam.

(contra todas as expectativas, não foi emprateleirada: não a puseram de castigo num outro piso, mas para não se habituar mal, fizeram com que ela sangrasse um bocadinho. Às escondidas, enfiaram uma pedrinha no sapato, um pionaise na cadeira, tiraram-lhe dez por cento da avaliação anual: toma lá 90 por cento, que a menina tem o apelido errado, que a menina tem a mania que é do contra e, em 2005, ela até precipitou uma alteração legislativa, e não foi nenhuma fonte dela que bufou fosse o que fosse, não foi trombone, foi ela que descobriu tudo sozinha e já nem se lembrava disto, não tivesse feito um esforço sobrenatural para se lembrar do que escreveu em 2005, e depois de se ter lembrado de uma manchete que andou nas Tv’s durante uma semana, não percebia porque lhe faziam isto, não percebia mesmo).

E andava sempre de headphones nos ouvidos, e isto não ajudava, passava-lhe muita coisa ao lado, mas, ainda assim preferia viver assim, embalando os dedos ao som da música – o trabalho purifica e liberta ainda mais ao som de uma boa banda sonora, e neste preciso momento estava a ouvir com muita atenção uma senhora húngara, de seu nome Marta, a cantar uma melodia triste que fala de amor (e é fatal como o destino: é tão fácil ser triste quando é sobre amor, e amor em húngaro diz-se "szerelem" e bem sei que não soa nada bem, mas pior, pior, era a sonoridade do amor na língua do povo que inventou a Nokia: "mina rakastan sinua", ensinou-lhe a sua irmã de nome mais nova e ela apeteceu-lhe ripostar com um "santinho!").

Por vezes, achava alguns dos seus comportamentos bizarros, mas atribuía-os a uma enorme excentricidade e leveza de ser; não parava um instante para os analisar, nem sequer com a clarividência que chegava nas noites em que o sono não tinha paciência para subir as mais de seis dezenas de degraus em estado de decomposição avançada do seu prédio situado na rua da santa mais amiga.
Tinha necessidades de informação mínimas, e isto era no mínimo estranho e surreal, porque ganhava os dias, pagava as contas a catar informações como quem anda ao papelão, de ouvidos e olhos bem afiados, permanentemente atentos a tudo o que se passava.

Aos fins-de-semana também não lia jornais. Nem nas férias. Era assim.

Começou com os telefonemas às cinco da manhã. Não percebeu.
Depois, com o fim da clandestinidade: na bola, onde encontraram os seus directores duas ou três bancadas acima e, no dia a seguir, no segundo jantar dos encalhados em Santa Marta. Ela não estava à espera que ele fosse, não estava à espera que desse jantar à loira, não colocou sequer a hipótese que ele ficasse, quando os demais convivas partiram escada abaixo. Ainda assim, não deu a devida importância. Deixa andar...

Começaram as cantorias nessa noite em que ele não ficou para dormir e ela encantada com essa sua mania de se ir embora, porque não estava preparada para o ver de manhã, de cabelo despenteado e aspecto de merda.
Já andava de rede de caçadora de borboletas no banco de trás do Idea quando ele chegou, sentou-se no lugar do morto e entregou-lhe um CD pirata, uma playlist de 18 canções. “O rádio não lê mp3”, disse ela. “Eu sei. Não são mp3. Eu penso em tudo. É para as aprenderes”, respondeu ele. E, nesse instante, ela desconfiou e levantou a sobrancelha. E ignorou. Como sempre fazia.
Já lhe tinham perguntado, no Idea, porque andava ela a ouvir Jorge Palma. Desconversava. “Não interessa”, rematava.
Estava a aprendê-las. Era bem mandada e à noite sonhava com duetos ao som de um piano.
Há poucos dias, o telefone tocou.
Do outro lado ouviu-se Xutos. “Amas a vida e eu amo-te a ti”.

Conta-me histórias, engana-me que eu gosto, nega tudo com figas atrás das costas.

Foi, então, que ela soube. Que ele a amava.

Com o Diabo no Corpo...

...e sem olheiras, cabelos brancos ou duplo queixo.
Ele afinal lia a (T)ralha. Era tudo bluff. Lia recorrendo à preciosa ajuda do rss feed, com news agregators -- tinha dois blogues, de duas mulheres que gostavam de encarnado, em watchlist. Esta é para relembrar os velhos tempos. Ele chamava-lhe "cara de foda". Ela adorava a expressão. E a cara.

terça-feira, março 07, 2006

Ali

Ali Farka Touré morreu hoje.
Veio ao meu aniversário, tocou em Monsanto só para mim. Fez três encores. Foi um concerto genial e decerto os elevados níveis de THC do meu sangue ajudaram a que essa seja uma noite memorável. Mas confusa. Nessa noite eu já sentia as dores do outro amor que me fez mal, ainda ele tinhaacabado de começar, há coisa de três, quatro dias. Em que não me lembro de ter conhecido a Andreia, que estava tão ou mais naturalmente alucinada do que eu. Em que acabei nas escadinhas da Bicaense, com a Qui Qui e o Telescópio, entre lágrimas e dores de garganta.
Ainda bem que fui ver o Ali e não fiquei trancada em casa com pena de estar a caminho dos trinta. Que dê muita e boa música lá em cima.

Caixa de música

O amor é óbvio, disseram-me.
Concordei.
Não se hesita em gritá-lo de pulmões abertos, com as cordas vocais bem esticadinhas: não importa o feedback, ou sequer a afinação. Dá-se de caras com ele em cada esquina, em cada semáforo encarnado, no cruzamento entupido, no escuro e no som abafado do túnel da avenida da República.
Não há como o negar. É o soro da verdade.
Este amor não explodiu ainda.
É uma panela de pressão, é uma sardinha enlatada.
Ele não ficava nunca para dormir.
Falava sem parar, falava até se fazer dia.
E cantava.
E nunca encontrara ninguém que o acompanhasse.
Ela cantou.
Vocês não sabem, mas ela canta melhor que escreve. Ele também não sabia.
E ele (en)cantou-se por ela.

domingo, março 05, 2006

Psicossomática

Era uma pergunta que ela desejava que ele nunca tivesse feito, que a tivesse guardado só para si, que ficasse na eterna dúvida. Merecia ficar na dúvida para sempre, era o mínimo, não havia direito de ter ousado articular a questão, sobretudo quando ela menos esperava, entre uma garfada de massa tricolor gratinada.
Hesitou em responder. E a pergunta ficou a pairar pelas paredes de um restaurante de linhas modernas - ela lamentava isto: que acabado o amor, ou o que raio era aquilo que viveu dentro de si durante meio ano, tivesse terminado, também, o velho hábito de se encontrarem nos mais ranhosos snack-bars do centro da cidade -, fez ricochete no balcão, deu uma voltinha pela mercearia fina do fundo da sala, ainda fez questão de dar um pulinho à mezanine, desceu as escadas e voltou à mesa, ressoando novamente nos tímpanos:

-- Fui eu que te fiz isto? A culpa é minha?

-- Sim.

Meteu logo o pai de todos na boca e, apesar de os joelhos doerem tanto que nem o Clonix os acalmava, começou num frenesim danado debaixo da mesa, uma espécie de sapateado nervoso que até fazia tremer a mesa.

Era uma pergunta que ela não queria que ele tivesse feito.

Não queria, simplesmente, pensar no mal que ele lhe fez. Porque não aceitava essa dor. Ela não escrevia sobre essa dor. Se escrevesse, aceitava que ela existia. A palavra escrita é muito mais poderosa que a falada, insistia, por isso, era uma fala-barato, não tinha tento na língua, muitas das vezes também não controlava as falanges dos dedos, mas em relação a esta dor fizera um pacto: nem uma linha.
Tinha mau génio, mas guardava apenas o melhor das pessoas. Negava, então, essa dor de noite, sobretudo de noite, porque durante o dia as dores doíam menos, havia mais ruído de dia, havia vida por todo o lado, e só à noite todos os gatos são pardos e as dores são parvas, atiçavam-na, provocavam, queriam jogar jogos de azar com ela e ela fingia que não via as fichas em cima da mesa, nunca pagava para mostrar o jogo, nunca aumentava a parada, as dores roubavam-lhe o sono dos justos que ela merecia, não digam que não, porque merecia, mas ela negava sempre estar a sofrer: fechara as lágrimas no canto do olho, ameaçou castigos cruéis se elas ousassem sair do canto onde as pôs de castigo com um chapéu de burro feito de papel.

E estrearam outro registo, naquele início de tarde em que a chuva voltou.

[no dia em que o irmão do seu amigo encontrou a nuvem perfeita, com um jardim de buchos, nos quais, uma anja com nome de flor, Margarida como a minha mãe, esculpiu labirintos, anjos e harpas. E foi bem rápida, a demanda pela nuvem ideal: a imobiliária lá do cima, Castelos de Nuvens, Lda, dirigida por um arcanjo muito patusco, de seu nome Gabriel, vasculhou o portfolio de residencias celestiais, e nenhuma agradava ao novo habitante alado. E, então, o arcanjo foi às nuvens mais antigas, as que estão em ruína, ou protegidas pelo Instituto Celestial de Património, nuvens muito velhas, nuvens que quase ninguém quer, porque não têm as comodidades das nuvens modernas - aquecimento e aspiração centrais -, e quando vasculhava nos arquivos o arcanjo disse Bingo e nisto lembrou-se que já não ia ao casino há umas boas semanas, ele e o seu colega Miguel gostavam muito da roleta, disse para a sua auréola que não iria adiar a jogatana por muitos mais dias, mas voltou a si, como que acordando de mansinho de um sonho, e foi buscar ao gigantesco armário atrás de si, a chave da nuvem (as mais recentes já se abriam automaticamente atraves da leitura das asas através de scanners digitais), deu-a ao anjo recém-chegado, que ainda não estava habituado às pequenas asas que lhe começaram a nascer nas costas - em breve aprenderia a voar, já se tinha matriculado nas aulas de iniciação - e que, entretanto, ficara hospedado na estalagem de Santa Marta. E o anjo das asas ainda pequeninas ficou muito feliz quando abriu a sua nuvem, mas ela estava muito suja, e as limpezas duraram todo o fim-de-semana, foi por isso que choveu o que choveu]

O homem que a ferira era um homem bom (ou isso, ou ela era banana sem cura e redenção). Ela estava em transe por causa dele. Era o icebergue que a sua mãe tantas vezes sugerira que fosse. Não sentia dor, mas também não sentia mais o amor.

Ele deixara de ler a (T)ralha e ela nem notou. Já não importava. Falhara. Falhara essa missão tonta de escrever um amor. Antigamente, vivia atormentada, seguia todos os seus passos no programinha pidesco das estatísticas, e ele era um dos primeiros leitores do dia, era um dos seus mais antigos leitores. Não mais.
Ficou magoado quando criou um pseudónimo na caixa de comentários e ela não o identificou. Revelou-se. Ela não vibrou de alegria, apenas pensou que ele escolheu bem o pseudónimo. Personagem do Garcia Marquez que não sabe amar. Escolheu muito bem.
Mas ela já não o procurava entre sequências intermináveis de algarismos que compunham os IP's dos seus leitores. Deixou de o seguir no dia em que deixou de dormir.
Depois disso, cresceram os cabelos brancos. Às vezes, surgiam estranhas reacções cutâneas, vermelhões imensos que se alastravam pelo pescoço e mãos acima e, assim como surgiam, desapareciam. Sem deixar rasto. Reacções psicossomáticas. Sinais que a dor existia, lá no fundo, que, qualquer dia destes, ia bastar uma sanita entupida, um copo de leite no chão, uma fila de trânsito, uma árvore abatida, não tinha esperanças: um dia destes tinha que rebentar. A dor tem que ser vomitada, expulsa pelos olhos, navegando em ondas salgadas de lágrimas.
Ela não era esta.

- Fui eu quem te fez isso?

- Sim.

sexta-feira, março 03, 2006

Teoria do amor [hoje não escrevo sobre outra coisa, mas este estava prometido à Carrie]

A minha querida Carrie levou porrada de todos os lados (daí eu nunca linkar ninguém, perceberam?) ao escrever no seu blogue, onde há mais cidade que sexo,

[o fenomenal Tiago Galvão diz que a produtividade dos blogues é inversamente proporcional à actividade sexual dos seus autores; tem razão, tem muita razão, e eu posto todos os dias, eu tenho uma média de 1,3 posts por dia, e eu não escrevo posts de duas ou três linhas, eu escrevo posts de sete mil caracteres com espaços, qualquer coisa como uma página de jornal, e isto diz tudo e eu quero aqui frisar, também, para quem chegou agora, que sou escritora profissional – expressão roubada ao FTA, do Mau Tempo no Canil –, e os escritores profissionais, os que ganham a vida a escrever redacções (Magui dixit) que, de madrugada, são impressas em papel de qualidade duvidosa cuja única utilidade que encontro é servir de cobertor a muitos sem abrigo pela Almirante Reis fora (a Almirante Reis é a minha avenida favorita), não medem a escrita pela sua beleza, medem ao caracter (jornais há, da concorrência, onde o software de edição, mede a escrita à linha)]

que, nós, mulheres, só gostamos de (homens) filhos da puta.

Enganou-se.
Esta teoria (mais uma) surgiu no interior do Idea, estacionado em segunda fila, com os quatro piscas ligados, em pleno Bairro Alto, com a Carolina a dormir na cadeira alemã atrás de mim, e o Telescópio no lugar do morto, e esta teoria era uma boa cena de filme, com a borracha dos limpa pára-brisas em banda sonora, hipnotizando as personagens e a acção.
Amigos de longa data (não é assim tão longa, mas parece, três anos é uma eternidade neste meu estranho mundo onde um dia parece um mês), questionámos o porquê dos amores assolapados nos atacarem como o mais mortal dos vírus, contra tudo e todos, contra as normas que bom senso aconselharia.
Não há vacina.
Ninguém está a salvo.
Nasce-se com essa imunodeficiência, não é adquirida. Eu sou portadora.
Eu tenho o corpo marcado por um amor impossível (o amor-bomba relógio também tem o seu quê de impossível; ele é bonito demais para mim, eu não tiro isso da cabeça, que ele é bonito demais para mim). O Telly sofre do mesmo.
Quando estamos com amores bomba relógio em mãos, quando há uma forte possibilidade de sermos felizes, que merda, que incrível chatice, deita fora, parte para o próximo, quero um gajo casado, um cheio de filhos e ex-mulheres problemáticas, quero curar um homossexual da sua bichice, quero um menino bonito, quero um toxicodependente, só quero amores impossíveis.
O amor é tanto maior quanto a sua impossibilidade. O amor é inversamente proporcional à probabilidade de um final feliz.