terça-feira, março 21, 2006

Desmontando a Beretta

[Versão menos gralhada; só reli uma vez, tenho os olhos tão cansados que só consegui reler uma vez. Mil perdões pela péssima qualidade literária]

Vira-se as costas, simplesmente.
Não se pensa mais nele.
Guarda-se a Beretta na gaveta da mesa de cabeceira, sem não antes desmontar o silenciador também em silêncio sepulcral, para se ser coerente com a função do acessório, e puxando lustro ao cano com um pano de veludo - mas, obrigada, b, a tua sugestão, do tiro na cabeça do sonho, mesericordioso, foi a que mais me agradou, foi a que, poeticamente, mais me agradou.

Hoje, nem a velhinha que pede moedas na esquina da Duque de Ávila com a Luís Bivar me comove. Eu não peço esmola mas estou à chuva, levo o olhar perdido e ninguém me dá a mão. Hoje, não estou altruísta e ando deselegantemente, com um vestido bonito do tempo em que estava grávida, tecido que se colava à barriga, botas de cano alto, bicudas, e meias de rede preta. E estou farta de ouvir piropos na rua porque ninguém diz que o vestido é de grávida, e sobe-me pelas pernas acima por causa da electricidade pouco estática das meias, e ainda oiço mais assobios. E piso as pedras da calçada escorregadia pela chuva-de-molha-tolos que me encaracola o cabelo sem piedade, ando pelas ruas como uma pata choca, não tenho paciência para tirar o buço que me irrita há mais de uma semana, muito menos para andar com a barriga para dentro e o peito para fora, ando à chuva, em zigue zagues, para me habituar que os dias são mesmo assim, nunca são sempre em frente, há mudanças bruscas de direcção a cada esquina, e é assim que vejo que sou conservadora, que detesto mudanças, que queria a vida sempre igual à que sempre conheci.
Vou a pé, e não de táxi, e não sei porquê, estava a chover, e mesmo quando está sol eu vou de táxi, apesar de não ser esquisita como alguns, não exijo ar condicionado. Vou a pé e isto faz-me mal - em cada esquina, há pedaços de mim e eu nem passei muitas vezes por estas bandas, esta não é uma zona em que eu esteja de tranças gigantes em cada canto, em cada rua, em cada lojinha. Mas naquela livraria vim buscar umas reproduções do Modigliani com o Zé quando ele ainda guiava o Austin A40; na galeria do defunto Godinho, vi o meu primeiro Lima de Freitas e soube que o meu pai era um grande pintor; naquele chinês jantei com a Filipa quando andava com três tipos ao mesmo tempo; com a dentista, com a dentista que se lembra de tudo pelo que passei, fui vendo a barriga crescer mês após mês, e os dentes a endireitarem-se, e os dentes a caírem, extracção após extracção, e eu posso ter 60 anos, e ela 70, mas ela vai-se sempe lembrar da rapariga que tinha oito dentes do siso, que quis que os arrancassem quatro de cada vez para sofrer tudo de uma vez só; o gaveto da Luís Bivar, o 40, era dos prédios mais bonitos de Lisboa e agora é amarelo e tem dez andares; o Particular, onde nasceu a Carolina e o prédio em frente ao meu quarto, que só era cofragens e fundações já está erguido, construído e vendido; no City vínhamos comprar jogos para o Spectrum, em cassetes, ou era no Soft Club?; no hospital ortopédico, engessaram-me o braço esquerdo e era lá que a minha avó Zá insistia, em vão, que eu tinha os joelhos tortos, e agora é um mamarraxo espelhado e eu tenho os joelhos desfeitos.
Tudo muda. E um dia vou esquecer-me do vitral do 40 da Luís Bivar. Um dia, vou esquecer. É tão certo que me dói.
Sei que obriguei as pernas a levarem-me à Conde Valbom, porque lá, os jacarandás já perderam a conta das primaveras, e mesmo com raízes que não os deixam sair para lado nenhum, os ramos dão voltas e voltas e amanhã estão um milímetro mais para a direita, ou para a esquerda.
Tudo muda, tudo muda quando menos se espera e eu não sei como a voz da minha cabeça me apanhou, deve ter comprado um Garmin, aparelhinho de GPS que eu tenho que comprar também, nem que seja porque é a única desculpa que arranjo para falar de novo com quem me faz falta; é o único pretexto que me ocorre para carregar no botão dois do elevador e puxar uma cadeira de rodinhas e sentar-me ao seu lado, em frente ao monitor de 21 polegadas.
A voz da minha cabeça, a que me fala comigo desde sempre, desde os tempos em que eu brincava sozinha porque só havia rapazes na rua, que cresceu e engrossou a voz comigo, apanhou-me, entre a Luís Bivar. Seguiu-me pela Pinheiro Chagas, foi ao meu lado quando cortei para Filipe Folque, e quando ziguezagueei para a Latino Coelho disse para me deixar em paz, que não quero falar com ninguém, mas ela sempre foi sábia, sempre quis o melhor para mim e, na Pedro Nunes, a cortar para a Tomás Ribeiro, ordenou que desmontasse a Beretta.
Já na Viriato, disse para me dar por muito contente: "Ao menos, dormiste uma noite de coração cheio", sussurrou. Há muita gente que nunca dormiu de coração cheio, diz-me, calando-se para o resto da tarde e seguindo o passeio até Santa Marta e largando-me em frente a uma porta 13.

3 comentários:

Anónimo disse...

Um dia vais esquecer. Um dia não vai doer mais. E eu deixarei de me sentir impotente por não te poder ajudar...

[ t ] disse...

fechei os olhos às gralhas, deixei o sorriso para ti. há-de doer sempre. só a dor é que muda. temos é que arranjar um remédio para a tua parte conservadora. ou talvez não. não. não há remédios nem curas. quero estar por aqui para me ires emprestando os teus olhos de vez enquando e assim ver o mundo com as tuas cores, e por vezes a preto e branco.

Mary Mary disse...

Lembras-te de ter contado do prédio onde a minha bisavó viveu e onde fui abençoada pelo Papa? Era no sítio onde viste as fundações do prédio e onde um novo está erguido neste momento. A tal janela foi substituída por uma enorme montra de banheiras de hidromassagem. E isso custa e dói. Se tivesses visto a casa de certeza que tinhas muitas histórias inventadas sobre ela e o seu corredor de sei lá quantos metros... Enfim, recordações e mais recordações... Obrigada por me fazeres sempre lembrar de coisas alegres e tristes, é da maneira que aprendo com elas.

Alguma coisa que precises é só dizer, conta comigo... Um grande beijinho...