sexta-feira, março 31, 2006

Coração metade

O coração dela cavalgava, batia muito rápido, não desacelerara com os anos, era o mesmo ritmo frenético dos tempos em que os dias eram todos iguais e submergidos numa paz imensa, no ventre escuro e quente da sua mãe.
Não se esquecia nunca disto – duas dezenas e meia de pré-adolescentes coreografados, espontaneamente, num semicírculo perfeito debaixo da pimenteira, fizesse chuva ou sol, vestidos com o mesmo uniforme: fatos de treino coloridos de polyester e sapatilhas de pele sintética sem logótipos de marcas conhecidas que exploram mão-de-obra escrava e infantil a pisarem o chão de betonilha do recreio, e o professor, de cronómetro ao pescoço, entre as mãos, e isto tudo num silêncio enorme, e ela com dois dedos no pescoço, outros, quase todos os outros, com o polegar a premirem a veia do pulso esquerdo; ela a ouvi-lo a batucar não dentro do peito, mas na cabeça, junto às têmporas, sempre de bochechas muito rosadas, sempre a ofegar, sempre de olhos fechados.
E quando o professor acabava o minuto de silêncio durante o qual ela se refazia e meditava sobre os mais variados enigmas do Universo – por exemplo, porque é que a árvore se chama oliveira e ao fruto azeitona –, pedia aos pupilos suados para gritarem alto o número de batidas que tinham contado. Cem, cento e dez, no máximo, cento e vinte. E ela descontava sempre uma dezena de batimentos, porque tinha vergonha, e dizia cento e setenta.
E o professor abria muito os olhos, largava um “não pode ser”, agarrava-lhe no pulso, dava novamente corda ao instrumento que aprisiona o tempo, e contava por ele próprio. E constatava que ela mentia sempre, que aquele coração batia em compasso quaternário perfeito, mas sempre a rotação elevada, a cento e oitenta batidas por minuto, ao mínimo esforço físico ou emocional.


Vive-se bem com um coração velocista. Que dispara à mínima emoção. Boa ou má. Que quer saltar pela boca ao mínimo vão de escadas. É uma questão eléctrica, o coração. Tão somente, dizia ela sem lhe dar importância. Procuram-se almas gémeas; o segredo está em procurar corações compatíveis, atirava ela, também, justificando a solidão e a sua condição cardíaca.

Partilhou o corpo e a cama com dezenas de batimentos que, no calor das noites, aceleravam até ao seu ritmo e depois acalmavam, descendo abaixo das cem batidas – quando assim era, ela sabia que estava condenado, que de manhã era o adeus, até nunca mais.
Batimentos subtis, outras vezes fortes, lentos, rápidos e assim-assim. Tirava a prova dos nove da compatibilidade cardíaca, enquanto os corações dormiam profundamente ao seu lado. Ouviu de tudo. Encostava o seu melhor ouvido, o direito, ao peito que tinha estado espalmado de encontro ao seu e escutava (se tivesse consigo um cronómetro como o do professor, ainda melhor, mas nunca calhou).
Uma noite, como todas as outras, sem promessas, sem futuro, mais uma que não lhe acalmou o peito, escutava aquele coração quase distraída, mais atenta à conjugação perfeita da respiração com o “pum pum” do músculo. E ele parou de bater. Por instantes, ela congelou, desencostou o ouvido do peito grisalho e o seu coração disparou para perto das duas centenas de batidas aos sessenta segundos. Voltou lá, com jeitinho, para não o acordar (como se os mortos se pudessem acordar, pensou ela depois, quando num minuto o coração já só batia 122 vezes). Recomeçara a bater. Passou a noite toda a ouvir a arritmia, deliciada. E soube que ali estava o seu coração metade.

[Obrigada ao JRA por ter tido uma arritmia durante a hora do almoço e a ter descrito de uma forma tão bonita que me fez escrever este texto. Qualquer semelhança entre esta prosa e a realidade é pura coincidência. Eu hoje quero desligar-me totalmente dela - hoje estou além.]

12 comentários:

Rui disse...

Tropeço no teu blog, logo no dia em que me esqueci de tomar o Lortaan.
Gostei.

Dia disse...

:)
Isso só pode ser um sinal... (se só hoje tropeçou no blogue, fique desde já a saber que eu vejo sinais divinos em todo o lado)
Obrigada pela visita, Rui, volte sempre.

PS - e tome o Lortaan. Com essas coisas não se brinca.

Isa disse...

é mais uma bela prosa, sim senhora! bjs

Isa disse...

já agora digo-vos, os vossos posts estilo lençol são os únicos que leio do princípio ao fim! Os um ou 2 blogs referidos no post da pole position são os vossos. bjs e bom fds.

Dia disse...

Ai o Rui é teu leitor?
Eu estava para aqui a pensar de onde ele me teria aparecido...

Isa disse...

curiosamente estou em crer que ele apareceu por causa do post da pole position em q TE linkei... portanto na prática ele veio cá parar por ti... ;-)

Anónimo disse...

que Liszt te liste.
que o artridol não compareça.
que escrevas assim sempre.
que sofras.
que rias.
que doa.
que sejas como és.

Dia disse...

Vocês mimam-me demais. Eu assim fico bem habituada.

Anónimo disse...

Concordo com a leitora dos lençóis. Há lençóis que escorrem muito bem.
Para quem queira saber, o coração que parou foi o meu, mas a descrição foi banalíssima. Tudo o resto, ou seja, tudo, veio do outro coração que também escorre bem, o da dona deste blog...

Dia disse...

ò meu amor, tu por aqui? Assim, fico sem jeito...
ps - eu achei a descrição da paragem genial.

Mary Mary disse...

Essa música dá-me paz que nunca mais acaba... Tão simples, tão monótona mas tão enebriante, mágica, e tudo o que sejam adjectivos bons!!! Adoro ouvir o coração das pessoas (das pessoas salvo seja, da nossa companhia quando a temos), e a respiração também!

AnadoCastelo disse...

Bate, bate coração
Pelo teu bater movido
Ai coração, coração
Que me estás no ouvido

Por tantas batidas
Como um tictac do relógio
Ai coração, coração
Não me deixes neste embróglio

Coração, coração
Bate mais devagar
Com tanta produção
Ainda vais te desgastar