quarta-feira, março 29, 2006

Fim da aventura

Seguiu-nos sempre de longe. Mas esqueceu-se que estou presa à realidade, que vejo coisas que mais ninguém vê, que sou da pior laia, que topei a sua sombra na esquina de uma rua estreitinha, de trânsito condicionado, enterrada pela pose altiva da velha Sé e da muito esconsa capela do Santo António (onde, há mais de dois séculos, as moças imploravam por um marido e colocavam o Santo de castigo, a um canto da cozinha, a olhar para a parede, quando ele não cumpria, no bailarico de Verão, no pátio do bairro, a sua tarefa simples de casamenteiro).
Esta prosa, quando nasceu, prematura (teve que estar ligada a fios e sondas porque não conseguia respirar e viver por si só; nasceu roxa, muito pequnina, era apenas aquela primeira frase lá de cima), no Beco dos Desaires, freguesia do Desamor (que fica na cidade velha da minha mioleira, a das casas com assoalhadas minúsculas, ruas estreitas de passeios onde não passa uma criança e onde há roupa a pingar água nos estendais, enquadrados por floreiras de sardinheiras encarnadas), tinha um final feliz. Não tem mais.
Seguiu-nos sempre de longe.
Raras vezes, deixou-se ver, gostava de brincar ao jogo do toca e foge, queria ser apanhado, claro que queria, é para isso que cá anda a complicar-nos a vida. Esqueceu-se que os meus joelhos estão destruídos, que não consigo mais correr pelas dezenas de cigarros que inalo, que estou crescida para brincar às escondidas, que estou cansada de jogos. Que quero as coisas mais simples, porque, para complicada, basta-me uma vida poluída por uma frustração enorme, por uma auto-estima miserável, pelo dinheiro que não chega ao final do mês, por recaídas maníaco-depressivas a cada semana que passa no calendário.
Mas meio ano de noites mal dormidas aguçou-me os sentidos, não os adormeceu. Vi além do que se apresentava à frente dos meus olhos e ouvidos. E apanhei-o, escondido atrás de uma edição do Expresso, na esplanada da Graça. Vi-o mascarado de consultor imobiliário em já não sei quantos quartos andares sem elevador, com vistas mais ou menos panorâmicas sobre o Tejo e sobre a cidade antiga. E ouvi-o a cantarolar, afinadíssimo, no meu quarto, o "Cara Valente" da Maria Rita.
Hoje é transparente, mistura-se, anónimo e errante, entre a multidão que todos os dias cumpre pontualmente a sua vidinha, sem contratempos, sem desvios significativos, que acorda às seis e meia da manhã, à hora em que geralmente adormeço, que apanha três transportes públicos para sair do dormitório que é propriedade do banco pelo menos pelos próximos trinta anos, que cumpre tarefas mecânicas no emprego, que, no fim da jornada de oito, dez, doze horas, vai ao supermercado e ao centro comercial comprar coisas que não precisa, justificando com meia dúzia de sacos de plástico, uma vida sem sabor. E dão-lhe encontrões, porque ele já não se vê, não se vê porque já ninguém acredita nele, tropeçam nele, mas não páram, não olham para trás, ele fica bem, mais pisadela, menos cotovelada, eles sabem que ele fica sempre bem.
Ele escondeu-se bem, era um jogo viciado à partida, com muitas cartas na manga, e este Amor era batoteiro. Eu procurei. Eu quis detonar esta bomba. Alguém a desarmadilhou. Não fui eu, não fui eu quem cortou o fio encarnado. Ninguém como eu entrou neste jogo para ganhar; ninguém como eu estava disposto a agarrá-lo com as unhas que se esfarelam ao mínimo toque, garras que nascem em dedos plantados em duas mãos que estão doentes e que doem a cada palavra escrita neste blogue; ninguém como eu estava disposto a abocanhá-lo com dentes perfeitamente alinhados pela ortodôncia; ninguém como eu, escreveria sobre ele, ninguém como eu o saberia escrever tão bem.
Sorria de cada vez que ele cometia um deslize. E quase o apanhei. Fugiu-me das mãos, no fim da aventura, por mim decretada, hoje, resta-me uma mão cheia de nada.
Mas ele seguiu-nos sempre de longe.
Afinal, nunca quis ser apanhado.

4 comentários:

Mary Mary disse...

Só me apetece dizer um palavrão de tão bem escrito que está... A sério, li-o duas vezes completamente deliciada! Este vou guardá-lo, não que os outros sejam piores mas adorei mesmo este! Acho vou acabar com isto e lê-lo mais uma vez...

Anónimo disse...

Mary Mary,faço minhas as tuas palavras

Dia disse...

Vocês é que são uma delícia.

Anónimo disse...

primeiro. um beijiinho à qui qui, e agora pronta para ilegalidades. (três dias sem tabaco... qui quiiiii)

agora para ti meu amor. já comecei a paginação. gostaria de ter a letra bonita e passá-los à mão. este vai para o grande book. achei que o final devia estar mais vincado. um sorriso hoje.

exbloguerthê