Psicossomática
Era uma pergunta que ela desejava que ele nunca tivesse feito, que a tivesse guardado só para si, que ficasse na eterna dúvida. Merecia ficar na dúvida para sempre, era o mínimo, não havia direito de ter ousado articular a questão, sobretudo quando ela menos esperava, entre uma garfada de massa tricolor gratinada.
Hesitou em responder. E a pergunta ficou a pairar pelas paredes de um restaurante de linhas modernas - ela lamentava isto: que acabado o amor, ou o que raio era aquilo que viveu dentro de si durante meio ano, tivesse terminado, também, o velho hábito de se encontrarem nos mais ranhosos snack-bars do centro da cidade -, fez ricochete no balcão, deu uma voltinha pela mercearia fina do fundo da sala, ainda fez questão de dar um pulinho à mezanine, desceu as escadas e voltou à mesa, ressoando novamente nos tímpanos:
-- Fui eu que te fiz isto? A culpa é minha?
-- Sim.
Meteu logo o pai de todos na boca e, apesar de os joelhos doerem tanto que nem o Clonix os acalmava, começou num frenesim danado debaixo da mesa, uma espécie de sapateado nervoso que até fazia tremer a mesa.
Era uma pergunta que ela não queria que ele tivesse feito.
Não queria, simplesmente, pensar no mal que ele lhe fez. Porque não aceitava essa dor. Ela não escrevia sobre essa dor. Se escrevesse, aceitava que ela existia. A palavra escrita é muito mais poderosa que a falada, insistia, por isso, era uma fala-barato, não tinha tento na língua, muitas das vezes também não controlava as falanges dos dedos, mas em relação a esta dor fizera um pacto: nem uma linha.
Tinha mau génio, mas guardava apenas o melhor das pessoas. Negava, então, essa dor de noite, sobretudo de noite, porque durante o dia as dores doíam menos, havia mais ruído de dia, havia vida por todo o lado, e só à noite todos os gatos são pardos e as dores são parvas, atiçavam-na, provocavam, queriam jogar jogos de azar com ela e ela fingia que não via as fichas em cima da mesa, nunca pagava para mostrar o jogo, nunca aumentava a parada, as dores roubavam-lhe o sono dos justos que ela merecia, não digam que não, porque merecia, mas ela negava sempre estar a sofrer: fechara as lágrimas no canto do olho, ameaçou castigos cruéis se elas ousassem sair do canto onde as pôs de castigo com um chapéu de burro feito de papel.
E estrearam outro registo, naquele início de tarde em que a chuva voltou.
[no dia em que o irmão do seu amigo encontrou a nuvem perfeita, com um jardim de buchos, nos quais, uma anja com nome de flor, Margarida como a minha mãe, esculpiu labirintos, anjos e harpas. E foi bem rápida, a demanda pela nuvem ideal: a imobiliária lá do cima, Castelos de Nuvens, Lda, dirigida por um arcanjo muito patusco, de seu nome Gabriel, vasculhou o portfolio de residencias celestiais, e nenhuma agradava ao novo habitante alado. E, então, o arcanjo foi às nuvens mais antigas, as que estão em ruína, ou protegidas pelo Instituto Celestial de Património, nuvens muito velhas, nuvens que quase ninguém quer, porque não têm as comodidades das nuvens modernas - aquecimento e aspiração centrais -, e quando vasculhava nos arquivos o arcanjo disse Bingo e nisto lembrou-se que já não ia ao casino há umas boas semanas, ele e o seu colega Miguel gostavam muito da roleta, disse para a sua auréola que não iria adiar a jogatana por muitos mais dias, mas voltou a si, como que acordando de mansinho de um sonho, e foi buscar ao gigantesco armário atrás de si, a chave da nuvem (as mais recentes já se abriam automaticamente atraves da leitura das asas através de scanners digitais), deu-a ao anjo recém-chegado, que ainda não estava habituado às pequenas asas que lhe começaram a nascer nas costas - em breve aprenderia a voar, já se tinha matriculado nas aulas de iniciação - e que, entretanto, ficara hospedado na estalagem de Santa Marta. E o anjo das asas ainda pequeninas ficou muito feliz quando abriu a sua nuvem, mas ela estava muito suja, e as limpezas duraram todo o fim-de-semana, foi por isso que choveu o que choveu]
O homem que a ferira era um homem bom (ou isso, ou ela era banana sem cura e redenção). Ela estava em transe por causa dele. Era o icebergue que a sua mãe tantas vezes sugerira que fosse. Não sentia dor, mas também não sentia mais o amor.
Ele deixara de ler a (T)ralha e ela nem notou. Já não importava. Falhara. Falhara essa missão tonta de escrever um amor. Antigamente, vivia atormentada, seguia todos os seus passos no programinha pidesco das estatísticas, e ele era um dos primeiros leitores do dia, era um dos seus mais antigos leitores. Não mais.
Ficou magoado quando criou um pseudónimo na caixa de comentários e ela não o identificou. Revelou-se. Ela não vibrou de alegria, apenas pensou que ele escolheu bem o pseudónimo. Personagem do Garcia Marquez que não sabe amar. Escolheu muito bem.
Mas ela já não o procurava entre sequências intermináveis de algarismos que compunham os IP's dos seus leitores. Deixou de o seguir no dia em que deixou de dormir.
Depois disso, cresceram os cabelos brancos. Às vezes, surgiam estranhas reacções cutâneas, vermelhões imensos que se alastravam pelo pescoço e mãos acima e, assim como surgiam, desapareciam. Sem deixar rasto. Reacções psicossomáticas. Sinais que a dor existia, lá no fundo, que, qualquer dia destes, ia bastar uma sanita entupida, um copo de leite no chão, uma fila de trânsito, uma árvore abatida, não tinha esperanças: um dia destes tinha que rebentar. A dor tem que ser vomitada, expulsa pelos olhos, navegando em ondas salgadas de lágrimas.
Ela não era esta.
- Fui eu quem te fez isso?
- Sim.
4 comentários:
.
(o teclado acabou de ficar salpicado de vermelho)
é sofrido mas é um belo texto, só pra variar... bjs dois mil...
U never cease to amaze me. Que grande post.
[By the way, o peso da culpa somos nós que impomos a nós mesmos, ou aos outros. Ou seja, só nos aleija o que nós permitimos.]
Chuac...
mai nada telescopio, so nos fazem o que deixamos que nos façam!
Enviar um comentário