quinta-feira, março 16, 2006

Os cinco sentidos

[Tenho que desligar a televisão. O filme é bom, mas eu raramente a ligo e penso mesmo em suprimi-la da sala, porque, de qualquer forma, está sempre no Panda, por isso, pode ir para a assoalhada à minha direita, onde o anjo loiro dorme de rabo empinado, virado para a lua, a bola que hoje já está menos cheia e que, em conjugação com o céu nublado, trouxe uma luz anilada à Duque de Loulé e à rua estreitinha que mora dez metros abaixo - luz de chuva, diz a Magui. É que eu já não sei como é que se faz, eu também não sei porque é que a liguei, mas não consigo deixar a emissão a roncar em surdina, como ruído de fundo, só como companhia, e continuar com tudo o resto, com os pensamentos desordenados na minha cabeça, à espera que oito dedos - dois, da mão esquerda, seguram o cigarro Camel (continuo em fase de alta rotatividade de marcas de tabaco) - os alinhem, perfeitos, neste blogue. Pronto, já está. Silêncio e a passarada não canta hoje, é absoluto, ouvem-se os carros lá fora e faz sentido: é uma noite concorrida nas minhas bandas, entre o quarteirão das discotecas africanas e o outro, dos bares de putas, e ainda o outro, dos travestis que se vendem na rua. E agora ouve-se a chuva, a Magui tem sempre razão, era mesmo luz de chuva, e eu dou graças a Deus pela chuva, tomara que ela caia três dias sem parar e que me lave o ar, para que, amanhã, e depois, eu consiga respirar e trazer um olhar menos drogado na cara]

Tenham a bondade de me auxiliar - e é feio, é muito feio, plagiar o ceguinho do metropolitano.
Mas, se houver algum médico a passear neste quintal, onde as árvores de folha caduca estão a começar a brotar folhinhas verde alface, e as amendoeiras, nespereiras e ameixoeiras estão em flor, num espectáculo que motiva romarias de norte a sul da blogosfera e renites alérgicas virtuais como nunca antes vistas, que me explique, por favor, porque é que me acontece isto tantas vezes.

A Magui fez arroz de pato fingido.
Abordei o arroz de pato fingido na tasca da Gama Barros, disse, mamã, já não fazes o arroz de pato fingido há tanto tempo, aquele que leva cenouras e nabo e bacon por cima, e, chegada a casa, com os olhos muito inchados e raiados de sangue, o nariz muito entupido, uma tosse que me faz doer o peito e as costas, lá me esperava o dito cujo, dentro do forno.
A Magui é uma mãe alimentadora. Há sempre comida para um batalhão em cima do fogão, dentro do forno e há reservas que davam para meses e meses a fio no frigorífico e na arca congeladora.

A Magui repara nestas coisas. Ela finge que não, mas repara. Eu não gosto de chorar ao pé dela. Porque eu sei que ela defende que as mulheres não choram. Mas ela sabe os sintomas da minha tristeza, mesmo que eu não traga a bexiga ao lado dos olhos e, quando eu estou mesmo triste, deixo de comer. E ela reparou, esta manhã, que eu emagreci, as calças, que estavam justas no início da semana, ficaram, subitamente, largas. Constatei-o ainda agora, em cima da balança laranja, que parece que foi feita por encomenda para a minha casa de banho: três quilos desde segunda-feira.
Por isso, o arroz de pato fingido à minha espera no forno. Porque pensou que, assim, eu comeria, que, assim, eu sairia voluntariamente, com os meus próprios pés e estômago, da idiota greve de fome.
E eu esforcei-me. Trouxe-o numa caixa para Santa Marta, aqueci-o um minuto e meio no micro-ondas. E arranjei, com esmero, uma caixinha de morangos comprados no Lidl de Xabregas, e quando estava com a faca na mão, debaixo de um fio de água frio que me anestesiou as mãos e as coloriu de roxo, lembrei-me dos cartuchos de papel manteiga, e dos vendedores que traziam, ora cerejas, ora morangos até à praça ao lado do cinema King.

-- Quais são os cinco sentidos, mamã? Falta-me um... Visão, Olfacto, Audição, Tacto e...
-- Que parvoíce... Também não me lembro...
-- O paladar é um sentido, não é, mami?
-- Não, acho que não... Hmmm...
-- Perdi o paladar, mamã. A bica não me sabe a nada. E hoje não cheiro, também, o meu perfume, o Rush, e sabes bem que ele tresanda a quilómetros. Estou com dois sentidos a menos e isto está sempre a acontecer-me. Qualquer dia, perco, também, o juízo. Não tarda, perco o juízo, olha, da próxima vez que me der a alergia aos fenos. Decidi.

E a Magui acha sempre que eu estou a hiperbolizar. Mas perdi-os. A renite instalou-se de pernas abertas no meu nariz, nos meus olhos, nos meus ouvidos e pulmões e o paladar foi-se, humilhado, escorraçado, e o olfacto nem sinto muito a sua falta, mas o paladar, angustia-me esta vida sem sabores agridoces na minha boca.
Os cigarros não sabem a nada, o arroz de pato também não, e os morangos, esforcei-me para imaginar o seu sabor, mas só senti a sua textura, e nunca tinha reparado na textura deste fruto adorado dentro da minha boca -- o sabor é um sentido tão forte, tão intenso que espanta todas as considerações que possam surgir; os sentidos, os outros quatro, ficam deleitados, é como numa relação doentia, em que um dos elementos do casal se apaga.
A vida sem sabor é como a vida sem amor. É triste.
Mas emagrece.

3 comentários:

MPR disse...

O paladar é o sentido dependente, só funciona aos pares, e não com qualquer outro sentido que se lhe apresente, este paladar é exigente, só funciona com o olfacto, perdes no nariz, sente-se na boca. Experimenta tapar o nariz ao comer uma colher de mel... só sentes o doce, não sentes o mel, apenas quando largas o nariz é que sabes que raio de doce é aquele. Tu não perdeste o paladar, perdeste foi o olfacto... o paladar apenas se apagou em luto, na esperança de um regresso que lhe traga uma nova razão de viver...

Telescópio disse...

Vejo as tuas olheiras.
Cheiro tanta inquietude.
Oiço nervosismo contido no auricular do telemóvel.
Apalpo terreno para saber mais.
E provo - delicio-me - com as palavras que aqui leio.

A escrita é o teu sexto sentido. Apuradíssimo.
[e eu sou a prova viva de que sim, a tua mãe cozinha mesmo bem]

AnadoCastelo disse...

Estou supersolidária contigo, pois por mal dos meus pecados (ai, ai) não tenho olfato. Hoje fui a um hipermercado e à porta de uma perfumaria estava uma jovem a oferecer bocadinhos de papel com um perfume novo. Nem sabes a fúria que tive comigo mesma por não conseguir cheirar o perfume. Eu que só fã de perfumes e não consegui cheirar nada. Ai que desgraça a minha. Uah, uah...