Dez metros abaixo da Duque de Loulé
A vida acorda madrasta dez metros abaixo da Duque de Loulé.
Às seis da manhã, dois aparelhos Nokia, da rede móvel detida pelo engenheiro que me paga o ordenado que desaparece, por artes mágicas, ao dia oito de cada mês, com a prestação da casa, encurtavam as distâncias geográficas e bichanavam-se babuseiras que faziam corar as orelhas direitas do emissor e receptor da chamada telefónica.
E, nisto, porque trezentos quilómetros de distância dão uma leveza de ser equivalente a uma pena de anjo e uma coragem de herói mitológico que derruba monstros de sete cabeças, apalpava-se, também, de mansinho, o terreno macio e fofo de um amor, com revelações tão perturbadoras como as de olhos revirados de prazer e sorrisos sacanas à luz de velas encarnadas - coisas que ela não imaginava que ele reparasse, porque são coisas pequenas, e ela não sabia que ele era dessa laia, só sabia que estas coisinhas a aqueciam mais que o duplo edredon king size que a sua ex-tia Milucha lhe tinha comprado para o enxoval há não sei quantos anos atrás.
E, às seis da manhã, dois amantes tentavam convencer um júri invisível que não estavam perto, sequer, de estar apaixonados um pelo outro - e batiam na madeira três vezes, e questionavam-se mutuamente: não estás, pois não? Claro que não, tás parvo?... Não estou a gostar da conversa, car#$%....
Cada um deitado na sua cama, cada um a falar como se estivesse a contar um segredo terrível, apenas para não acordar quem dormia no quarto do lado, e os dois cérebros praticamente fluorescente de tanta radiação GSM que pairava no ar - telefonemas às duas, às três, às quatro e às seis da manhã -, e, enquanto estavam nisto, a luz da assoalhada única das águas furtadas do prédio vizinho da frente - essa sim, verdadeiramente fluorescente, a luz que me acordou por milagre no dia do fogo que dos encalhados de Santa Marta - , habitada por uma meia dúzia de imigrantes de leste da Europa que, suponho, se amontoam todas as noites, em beliches e colchões de palha, nos cantos esconsos daquele anexo ilegal, e (sobre)vivem no limiar do trabalho escravo, enquanto os amantes se deliciavam com o timbre das suas vozes, essa luz estava há muito ligada.
Às vezes via-a na rua, a mulher magra e seca, que estende uns panitos e cuecas no estendal improvisado com uma corda de sisal à janela, a única janela, minúscula, daquele depósito de seres humanos. Anda sempre com um lenço na cabeça e parece acabadinha de chegar da máquina do tempo, do século XIX, plena revolução industrial, vem até com a cara ligeiramente farruscada de carvão.
Um dia bateu-lhe à porta. Perguntou se podia alugar-lhe um quarto. Era para o filho. Mas antes apresentou-se, ofereceu os seus préstimos domésticos, e ela já sabia quem era esta mulher transparente: quando regava as flores da sacado do seu quarto, via-a enquadrada pela moldura da janela, pelos panos e pelas cuecas estendidos na corda.
Disse-lhe para entrar, e agora já não se recordava do nome da senhora do lenço na cabeça, da mesma forma que, também já não sabia, outra vez, o nome do ortopedista que amanhã lhe ia escarafunchar o joelho direito, o maldito osso que lhe retirava alguma alegria de viver com o cocktail de dores com que a presenteava de manhã e à noite.
Envergonhou-se. A mulher disse que nunca tinha visto uma casa tão bonita. E a Martinha (a casa, para quem acaba de chegar, a minha casa chama-se Martinha; que maçada, ter que fazer estes parêntesis, ter a papinha pronta, com o tempero e temperatura ideais; é que hoje e ontem, andou muita malta a pesquisar no Google e no Sapo pelo blog da Diana Ralha, por isso, meus caros, tenham medo, tenham muito medo, que eu sei tudo e, pior, sei onde trabalham, e já que estou a falar das minhas actividades de detective, ando há imenso tempo para saudar o visitante belga e o senhor(a) que trabalha na Energis UK, e, claro, os madrugadores norte-americanos - Ford Motors, eu sei que andas por aí) ficou inchada, velha vaidosa como nunca se viu, a caminho dos duzentos anos já devia ter juízo e ser menos flausina e não devia fumar, também, que não fica bem a uma senhora de tanta idade fumar, mesmo que seja com boquilha, como ela faz, mas ela, ficou envergonhada, porque a Marta é, realmente, bonita, porque a decoração foi pensada ao último detalhe, e a parede laranja está na moda, e a cozinha parece um bordel parisiense, mas ela não era mais feliz por ter uma casa que, quando está arrumada, fora das mãozinhas pequenas de um anjo loiro, podia ser parte integrante da última edição de uma revista de decoração.
Ela não tinha um quarto para o filho da mulher do lenço. Tinha um quarto interior, que poderia ter alugado por 150 euros, seis metros quadrados sem janela, mas era o seu closet, lá moravam os fantasmas, juntamente com as dezenas de sapatos e vestidos de decotes vertiginosos.
Um andar abaixo, a vizinha também anda de lenço na cabeça. Verde, com cornucópias. É recente e não é moda, confirmando os seus piores receios. Hoje, alimentava o seu cancro de pulmão à varanda do jornal e viu-a passar pela Viriato. Com chapéu azul na cabeça. Chegou a casa há pouco, enfiou a loira febril dentro da cama e olhou lá para fora. Estava à procura da lua, que esta noite está a meio gás, mas não encontrou a bola cortada a meio, mas sim, a vizinha sem lenço e sem cabelo.
A vizinha deixou de comer, todas as manhãs, maçãs golden na companhia do chilreante e amarelinho canário (e isto até rima, maçãs e manhãs, e quem rima sem querer é amado sem saber). Ela notara. E temia a substituição das maçãs pelo lenço verde com cornucópias. Rezaria pela vizinha. A partir de hoje.
A vida acorda madrasta dez metros abaixo da Duque de Loulé.
A Dona Beatriz descobriu que tem uma neta de um ano do seu filho de vinte anos, que trabalha na TVI, nos Morangos com Açúcar. Passou dois anos na "terra" (sempre gostei dessa expressão, a "terra") a cuidar dos pais, enterrou-os e enterrou, também, parte dela por lá, e ninguém lhe contou nada. "Estiveram para a dar para adopção e ninguém me disse nada, soube assim, do nada, uma neta, uma neta, como é que ninguém me disse nada?", e diz isto e abraça a minha filha e dá-lhe um Kinder (e a Carolina agradece com um "Tiz" e um beijinho).
Fala-me de um casamento onde não há diálogo, onde nunca houve, de um homem mudo e vinte anos mais velho, diz-me que o telefone toca todos os dias e são sempre mais dívidas, conta-me que os fornecedores chegam à tasca e apresentam sempre mais créditos, não aguenta e chora, fala do demónio que lhe entrou na casa, que levou o carro, que pôs o negócio à beira da falência, diz-me que o tratou como um filho, que tem pena dele, que lhe perdoa e reza por ele, e conta-me histórias da Bíblia, e cita-me frases de livros que a tocaram, e é tão boa a dona Beatriz, é uma pessoa que tem bondade escrito em cada ruga da cara, em cada fio de cabelo branco pintado de cobre, e a vida anda madrasta a dez metros abaixo da Duque de Loulé.
E às vezes eu quero chorar. Quando a Carolina vem a dormir e eu tenho que trepar os degraus da via sacra de Santa Marta com um peso adormecido de 15 quilos ao colo. Levo-a apoiada no vale profundo que se desenha entre a minha cintura fina e a minha anca. Foi feito à medida de anjos, aquele vale.
E nem os conto, sei que são mais de sessenta degraus, mas não os conto. Chego ao segundo andar e penso que já só faltam outros dois. No terceiro, o coração já está a querer sair pela goela e hiperventilo muito baixinho para não acordar o bébé mais bonito que algum dia se viu a dez metros abaixo da Duque de Loulé, mas eu só penso que só faltam dezasseis para chegar.
Acordo, todos os dias, ao nível da Duque de Loulé. Aliás, acordo ligeiramente elevada face àquela avenida de Lisboa onde só podem circular transportes públicos.
E a vida não acorda madrasta do meu lado da rua.
4 comentários:
lindo.tiras fotografias subtis em forma de texto...
Com mil palavras como estas, não imagens que se equiparem...
mto bom, pra variar! ;-) bjs
Melhor narrativa do que muitos escritores consagrados. Gostei muito.
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