sexta-feira, dezembro 02, 2005

Às catorze horas quarenta e três minutos

Às catorze horas quarenta e três minutos e vinte e um segundos, a esposa do senhor Mário Calado, 54 anos, faz girar a rodinha de um telefone antigo, negro, dos TLP, e, com o coração na boca, preso no dente do siso direito do maxilar superior que nunca se deu ao trabalho de tirar e que até ajuda a segurar a placa, o coração a querer pular para as mãos e as mãos a tremer e geladas, incumbidas de uma outra tarefa mais importante que amparar corações que querem sair pela janela de uma rua feia do Alto do Lumiar, as mãos a girarem a roda como se fosse uma combinação de uma casa-forte, as mãos sem obedecerem à senhora Calado, que se manteve em silêncio durante os três segundos e quatrocentos e setenta e cinco centésimos que demorou a discar a sequência 1-1-2 .

Às catorze horas quarenta e três minutos e vinte e dois segundos, de auricular preso no ouvido direito, os dois operadores do grupo 1 do Centro de Orientação de Doentes Urgentes do INEM, alheados aos gritos que o operador do grupo 2 emite – minha senhora, qual é o número da porta? Diga-me um número, um qualquer! Eu sei que não conhece o doente, mas diga-me onde está! –, jogam computador em rede, um jogo de corridas de automóvel, não sei bem, não posso garantir, mas parece-me que é o jogo em que ganha quem atropela mais velhinhas e carrinhos de bebé.

Às catorze horas quarenta e três minutos e vinte e três segundos, o septuagenário do terceiro andar de um prédio centenário da rua de Santa Marta estende as ceroulas à janela. Nesse mesmo segundo, a gata tricolor do meu quintal espreguiça-se. Ali pertinho da Estefânea, no fim da rua, num prédio que implora por obras, às catorze horas quarenta e três minutos e vinte e quatro segundos, um sindicalista acode uma mulher perdeu o emprego no Intermarché porque está grávida.

Passa outro segundo e no Mercado 31 de Janeiro a peixeira acaba de lavar a banca, pronta para ir fazer umas horas a passar a ferro numa casa de onze assoalhadas no Campo Pequeno. E outro, no Liceu Camões, às catorze horas quarenta e três minutos e vinte e seis segundos, uma aluna tímida, que passa os intervalos sozinha com os dossiers da Agatha Ruiz de la Prada, porque calça o 42 de calças e tem uma miopia cavalar, recebe um 19 a Matemática e vê cada vez mais perto o curso de medicina (ela ainda não sabe, mas, daqui a muitos milhões de segundos, vai trabalhar ali pertinho no INEM, vai levar a vida a salvar outras vidas).

Às catorze horas quarenta e três minutos e trinta segundos chega à base uma Viatura Médica de Emergência e Reanimação de marca Volkswagen, de motor TDI, enfiam-se os três tripulantes na tasca da porta ao lado do INEM, o condutor pede uma chamussa, o médico um bolo de bacalhau, o tripulante de ambulância de emergência uma bica. Não falam, o dono da tasca sabe, às catorze horas quarenta e três minutos e quarenta segundos, que eles perderam uma vida, e o que não imagina é que foi uma criança de quatro anos, que se engasgou com um pedaço de pão, os três vão deixar de ir à padaria, decidem isso, em uníssono mental, às catorze horas quarenta e três minutos e trinta e sete segundos.

Às catorze horas quarenta e três minutos e quarenta segundos, a última folha do diospireiro do Quintal da minha vizinha alentejana cai com uma rajada de vento gelado e o operador do INEM identifica a maleita do senhor Calado, doença metabólica, coma diabético, diz à senhora Calado, que está outra vez em silêncio, vamos já mandar socorro, um segundo depois, naquela mesma sala, dois passos e uma mão à frente, sai uma ambulância do Pulido Valente para o Alto do Lumiar.

Às catorze horas quarenta e quatro minutos e cinquenta e oito segundos, estou com as mãos nos bolsos do sobretudo de fazenda castanho, o Pedro fotografa freneticamente e um projector pinta a parede com a localização de todos os meios de socorro do INEM (e quase todos estão a piscar, à excepção de uma ou outra ambulância e do helicóptero, às catorze horas quarenta e três minutos, a vida de muita gente mudou).

E durante estes sessenta segundos das catorze horas quarenta e três minutos continuei no café manhoso, atrás de uma parede azul, com dois cafés e dois SG ventil queimados no cinzeiro. E depois destes dias todos, ainda estou no café manhoso.

8 comentários:

Anónimo disse...

lindo e muito jeunet;)

Lcego disse...

A essa mesma hora. O Afonso passou com as cabras mesmo enfrente deste escritório a tia Luz cerrou a capucha e foi buscar lenha. Eu bebia o meu café instantâneo e aquecia os pés na salamandra da rural empresa de espectáculos e olhava a janela. O café, o café...

Anónimo disse...

Hum.. A Amélie, de novo..

Anónimo disse...

Às 17h, 02min. e 30sec., estou em coma, aguardo pelas 18h, 00 min. e 00sec., para sair do estado vegetativo..........

Anónimo disse...

muito bom...!

Dia disse...

O senhor Calado existe mesmo. A criança de quatro anos também. Apesar de não saber a lenga-lenga, porque não sou católica, todas as noites tenho rezado por eles.

Ricardo Marques disse...

Guillaume Laurant...
BJs.

Carrie disse...

Lindo! Morro de inveja de não saber escrever assim (acho que já te disse isto). Fico presa às palavras, eu que fujo de postas longas porque a lista de quintais a visitar está cada vez maior, perco-me nas tuas linhas. Todos os dias vou lendo mais um bocadinho. hoje cheguei aqui e fiquei. Obrigada por seres quem és, mesmo não te conhecendo, se bem que quem tem um lugar no coração do PZG tem de certeza um lugar no meu também.