Véspera da véspera de Natal (a revolta dos drafts natalícios)
[Um dos muitos drafts do dashboard que eu teimei que tem que ser escrito hoje, apesar de estar com sono, com muito sono - os Pestanas fizeram as pazes com este T3 de Santa Marta, parece que o Pai Natal também e eu estou grata, apetece-me dizer "bem haja", que era a frase que o meu avô Oliveira dizia sempre que alguém praticava o bem perto dele. Agora, não esperem grandes obras literárias, nem hoje, nem nos próximos dias. Estão fartos de saber, até porque eu o repito até à exaustão - e não, hoje não vou citar o Vinicius - que a felicidade não é amante da qualidade literária, mas se esse é o preço a pagar, que assim seja, que se dane a escrita, eu nem sequer estou certa que escrevo bem]
Hoje, véspera da véspera de Natal, vejo mais do que ontem.
Vejo coisas do arco da velha e isto nem sequer é novidade, não sei porque escrevo, eu vejo sempre mais além. E hoje nem não estou de óculos de massa castanhos escuros pendurados sobre o nariz arrebitado, o nariz cheio de personalidade que o gene dos Ralhas me deu. Não uso óculos há muito tempo, aliás, não sei onde meti as armações do senhor Calvin, as que me valeram um piropo no elevador Schindler do jornalista mais bonito, charmoso e respeitado de Portugal, as que me aumentaram milagrosamente as letras dos livros e do computador, porque, eu não sabia, eu pensava que era o contrário, mas eu não vejo é nada ao perto.
Hoje é véspera da véspera de Natal e vejo coisas que mais ninguém vê, penso noutras que mais ninguém pensa.
Anda todo o mundo atarefado com as compras, com os perús, os brinquedos, os bric-a-bracs que se acumulam nos sacos de plástico, merdas que ninguém precisa, umas peúgas para o primo Luís, um pano da loiça para a sogra Carménia, uns bombons para a cunhada Isabel, um Nenuco para a mais nova e uma Bratz para a mais velha, anda toda a gente nisto, a Magui inclusive, e eu, alheada a todo o reboliço que me cerca, fico hipnotizada com o talhante que corta costoletas como se fossem feitas de manteiga (quando ia ao talho de Alvalade com a avó Tóia, um talho que tinha um touro de peluche por cima da vitrine de exposição da carne, ficava maravilhada com a máquina de fazer hamburgueres; quando a Magui tinha dentes e era uma das mulheres mais lindas do planeta, eu ficava em transe com a táctica de brushing da sua cabeleireira, podia ficar ali horas a olhar para aquilo).
O povo saiu à rua num dia assim, fumaram uma ganza de espírito natalício (droga caríssima e cada vez mais difícil de encontrar, só nas melhores lojas, nas mais requintadas, lembra-me as trufas com as quais tenho desejos de há umas semanas para cá) e decidiram fazer uma revolução. Em vez de cravos, trazem cartões de crédito nas mãos, e em vez de saírem para as ruas, fazem esvoaçar os Visas (vi poucos Mastercard; a Magui tem um Mastercard, eu acho que só gente mesmo fina tem Mastercards) sobre filas intermináveis das caixas de pagamento, e esta gente lembra-me as defuntas e aterafadas formigas de Santa Marta, que, se calhar, andavam nisto também, enlouqueceram em pleno Inverno, quando deveriam estar quietinhas no formigueiro a curtir a labuta do Verão e a recusar comida à pobre da cigarra, foram, decerto, contagiadas com esta coisa do Natal e andavam às compras na minha cozinha bordel, até que eu as exterminei, sem dó nem piedade, com o estranhamente eficaz insecticida Raid.
Eu não sabia porque não gostava do Carrefour. Agora já sei. No hipermercado francês, os letreiros gigantes que anunciam os preços dos produtos do folheto são feitos e impressos a computador. Nos hiper e supermercados do grupo Jerónimo Martins, há um artista que os desenha. E eu dou por mim, com o carro cheio de lampreias de ovos, troncos de Natal, rabanadas, sonhos e coscurões a pensar nesse senhor (tenho a certeza que é um homem), fechado numa espécie de atelier, junto a paletes de leite e de arroz a desenhar letras e preços num estirador improvisado com caixotes de detergente Skip; dou por mim a sorrir com o cunho artístico que ele empresta a cada letreiro, escrito com marcado preto sobre fundo amarelo - gosto muito do perú que ele desenhou ao lado dos 1,99 euros por quilo, da lampreia naif (mais uma vez, o trema, não o encontro) a 7,99 euros o quilo e do bolo-rei a um preço que não fixei.
Hoje tenho visão raio x e, pela primeira vez, dou-me ao trabalho de reparar que o hipermercado onde levo a Magui a abastecer-se, no meio de Chelas, se situa na rua cidade de Bratislava. E, parada no trânsito, em vez de levar o olhar perdido no semáforo camaleão, que, ora é verde, ora é encarnado, olho para o carro do lado. Primeiro, para o meu lado direito, onde um casal viaja com semblante carregado e profundamente infeliz (estão juntos apenas por causa da hipoteca da casa que compraram num qualquer subúrbio de Lisboa). Depois, para o meu lado esquerdo, onde uma mulher está a chorar. Fixo-a. Identifico-me - tantas vezes peguei no carro sem destino, apenas com o propósito de chorar, chorar sozinha, pela cidade, enfiada num qualquer engarrafamento, chorar no meio de estranhos porque eu não quero que a loira me veja assim.
Mas nunca ninguém se dignou a mirar a minha dor. Nem mesmo quando andava de metro, sempre acompanhada de um caderno de merceeiro da papelaria Fernandes e de uma caneta Rotring prateada, e às vezes, quando escrevia uma qualquer coisa bonita, relia e depois chorava, chorava sem vergonha, não tenho vergonha de chorar, sou desavergonhada a chorar e a rir, também, faço ambos os exercícios com perfeição, utilizo toda a cara, vinco rugas na minha cara (quando choro, surge a ruga a meio das sobrancelhas; quando rio, faço rugas nos cantos dos olhos e afundo a covinha na bochecha direita).
Há um qualquer sexto sentido que nos alerta quando alguém está a olhar para nós. Mesmo quando estamos a dormir, mesmo quando estamos a chorar. A mulher estava em transe, com um ataque de comoção, mas pressentiu-o. Olhou para para mim, Honda Civic preto, o sinal ficou verde, uma última lágrima caiu-lhe pelo rosto sem ela querer, ela limpou-a, envergonhada por eu estar a olhar despudoradamente para a sua dor, sei que ficou danada comigo, perguntou para si própria: porque é que não és como os outros, os que fixam o olhar no semáforo e vão a pensar o que vai ser o jantar, ou se haverá sexo logo à noite, e além de ver tudo, eu às vezes também leio pensamentos, larguei a mão direita, a que está doente por ter trabalhado noite e dia sem descanso a escrever um amor, soltei a mão da manete das mudanças, e espalmei-a de encontro ao vidro, como quem diz: "Vai tudo ficar bem". Ela sorriu e seguimos as duas com a nossa vida.
3 comentários:
também te deixo um sorriso por detrás dos meus olhos. um beijinhos minha querida linda
E não é que está mesmo tudo a ficar bem?
Só tu é que me fazes comover nesta entrada de ano, enquanto ponho em dia os posts atrasados...
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